segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Plano Municipal de Educação e a “defesa” da Família


            No dia 24 de junho de 2015 a Câmara Municipal de Sorocaba votou o projeto de Lei 130/2015, de autoria do Poder Executivo, instituindo o Plano Municipal de Educação. Esse projeto de lei, ao contrário do texto construído democraticamente por Plenárias com ampla participação popular, sofreu a lesão e corte de alguns tópicos importantes que garantiriam a qualidade da educação, o acesso e a permanência na escola.
            Expressando uma suposta dicotomia a que se reduziu o debate sobre o Plano Municipal de Educação de Sorocaba, o jornal Diário de Sorocaba, veiculando supostamente a visão católica do debate, estampou na primeira página de seu periódico a manchete: “Câmara derruba ideologia de gênero e valoriza a família”. Diz mais o jornal que “As propostas que tratavam sobre as questões de gênero e do ensino religioso na grade curricular foram excluídas, valorizando-se a família” (DIARIO DE SOROCABA, 25 jun 2015, p. 1).
            A princípio a afirmação do próprio jornal se faz contraditória na medida em que, na mesma frase, situa as questões de gênero e o ensino religioso em contraposição a valorização da família. Parece, entretanto, que nem um e nem outro são empecilhos para a existência e muito menos para a valorização de qualquer forma de família. Curiosamente, a votação do Plano, ainda assim, foi unânime a despeito dos discursos inflamados que antecederam a votação.
            Porém, quando se fala em “família”, os que defenderam essa posição em verdade estão pelejando pelo modelo conceituado de família nuclear, paradigma ocidentalizado de família composta por pai, mãe e filhos. Os defensores da família nuclear acreditam que esse seja o modelo “cristão” e, acima disso, criado por Deus.
            No entanto, há alguns equívocos de ordem histórica e, creio também de ordem teológica que desmentem essa tese. A começar pelo conceito de família nuclear. Supostamente esse conceito se escora em dois grandes modelos: o da criação da humanidade, conforme descrito no livro do Gênesis (Adão, Eva e seus filhos) e, ainda, no que o catolicismo costumou nomear como Sagrada Família (José, Maria e Jesus). No entanto, a Sagrada Família nem é o foco principal dos Evangelhos. Para se ter uma idéia, o Evangelho de Mateus, escrito para o público-alvo dos judeus (STROBEL, 2001, p. 30), em seus 28 capítulos trata da família, como esse núcleo de pai e mãe com seu respectivo filho, apenas nos dois primeiros capítulos. Ademais, Jesus nem mesmo foi fruto dessa união entre José e Maria (Mt. 1. 18 – 21). Ou seja, dentro do conceito de família nuclear, esse nem seria o modelo ideal.
            Além disso, esse conceito, criado por volta de 1947, se contrapõe especificamente ao modelo do clã, do qual há exemplos múltiplos no Antigo Testamento, dos quais se pode destacar o de Abraão que, obedecendo a Deus, saiu de sua terra e de sua “parentela” (Gn. 12.1) e partiu com sua mulher Sarai seu sobrinho Ló e com seus escravos (Gn. 12.4). Por meio de sua escrava Agar, o patriarca Abraão teve seu primeiro filho, Ismael (Gn. 16.2). Jacó, um dos filhos de Isaac e neto de Abraão, casou-se com duas filhas de seu tio Labão: Lia e Raquel (Gn. 29. 15 – 35; 30 e 31). Jacó mantinha relações tanto com Lia quanto com Raquel, bem como com as escravas dessas (Gn. 30 – 18). E Deus abençoava essa família!
            Longe desse modelo idealizado da família nuclear, a Bíblia apresenta outras formas de organização familiar as quais Deus teria aceitado ou ao menos “tolerada”. A poligamia era uma das formas de organização familiar no tempo dos patriarcas. Apesar das contendas que isso pudesse gerar como ciúmes e disputas, o fato é que “a poligamia era habitual, especialmente no tempo dos patriarcas. Se um homem não podia levantar dinheiro de casamento para uma segunda esposa, ele considerava a compra de uma escrava para esse fim ou o uso de uma que ele já tinha em casa” (TENNEY et al, 1996, pp. 18 -19).  Além disso, é importante ressaltar que na genealogia de Jesus aparecem personalidades que não se encaixam nesse modelo de “retidão” da família nuclear. Entre eles, o já citado Isaac (que era polígamo); Davi (que cometeu adultério com Betsaba, ordenando, depois, ao esposo desta para que fosse à frente de uma batalha para ser morto); Salomão (que possuía 700 esposas e 300 concubinas, conforme 1 Rs. 11.3), Raabe (prostituta que se converteu posteriormente e que foi trisavó de Davi, de acordo com Js. 2.1 e Mt. 1.5).
            Isso tudo para mostrar que o modelo de família foi mudando ao longo dos tempos e continua nesse processo histórico. Nenhum dos modelos anteriores “destruiu” a família. O modelo de família nuclear, de fato, surge com a Idade Média no momento histórico em que se fazia necessário garantir a base material na transmissão do bem de família, porquanto a terra era a principal – se não a única – fonte de riqueza (PERNOUD, 1944). Coincide, ainda, no momento histórico do fortalecimento do poder da Igreja Católica como instituição detentora do monopólio sobre a cultura, a arte e os costumes. Diferentemente, no entanto, do que se possa pensar em termos de moral cristã, há fortes indícios de que os senhores feudais da época exigiam o “direito da primeira noite”, ou seja, a prerrogativa de desvirginar as noivas dos servos!
            Discutir as questões de gênero hoje é reconhecer a existência de várias possibilidades de uniões afetivas e constituição de modelos diferenciados de família. A escola é sim um dos locais onde esse debate deve ser posto. Afinal, é na escola que transitam as pessoas que vivem na sociedade. A escola não é um espaço isolado e isento da sociedade. É importante, portanto, que os professores e demais trabalhadores das escolas sejam instrumentalizados a lidar com as demandas atuais, tais como a juventude, sexualidade, gênero, relações étnico-raciais, educação inclusiva na perspectiva dos Direitos Humanos... Discutir questões de gênero não obrigaria ninguém a mudar a sua identidade de gênero e orientação sexual, mas antes, significa reforçar o principal mandamento cristão que é o do amor ao próximo (Mt. 22.39). É reconhecer que todos têm o mesmo direito de existirem e de serem respeitados, independentemente de suas crenças, de sua origem, sua condição social, de sua opinião, de sua orientação sexual, de sua etnia. Mesmo a opção de não se casar, que é uma imposição aos sacerdotes católicos, desde 1123, ainda que contrarie o texto bíblico que diz: “Se alguém almeja o episcopado, de fato, deseja algo excelente. É fundamental, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só esposa” (1 Tm. 3.1 -2). Isso sim poderia ser considerado como uma afronta a constituição de família.
            E antes de condenar o outro, é preciso verificar o que o verdadeiro cristianismo diz a esse respeito. Em algumas oportunidades, Jesus deixou bem claro que não lhe agradava ver alguém julgar (ou prejulgar) o seu semelhante. Em Mt. 7.5, Jesus chama de hipócritas aqueles que julgam o outro, dizendo: “E como podes dizer a teu irmão: Permite-me remover o cisco do teu olho, quando há uma viga no teu?  Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão”.  Em outra oportunidade, Jesus disse: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados” (Lc. 6.37). E quando os judeus queriam apedrejar a mulher adúltera, Jesus lhes disse apenas: "Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela" (Jo. 8.7). Parece que Jesus está clamando a nós, neste momento, solicitando de nós a consciência de que não somos dignos de julgar ninguém.
Além disso, foi o próprio Jesus quem flexibilizou o conceito de família quando no momento em que os discípulos disseram que sua mãe e irmãos o procuravam, respondeu-lhes: “E, estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; Porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe (Mt. 12. 49 -50).      
            A votação do Plano Municipal de Educação de Sorocaba, entretanto, deixou de fora pontos importantes na defesa da qualidade da Educação e do acesso da população aos serviços prestados pelo Poder Público, como o atendimento de creches a todas as crianças, valorização dos profissionais da Educação, garantia de transporte escolar gratuito a todos os estudantes... E nesse sentido, ao contrário do que divulgou o jornal, a família saiu derrotada!
  
Bibliografia 
BIBLIA SAGRADA. Rio de Janeiro: Editora Vozes / Editora Santuário, 1982.
PERNOUD, Régine. Lumière du Moyen Âge. Paris: Bernard Grasset Éditeur, 1944.
STROBEL, Lee. Em defesa de Cristo. São Paulo: Editora Vida, 2001.
TENNEY, Merril C., PACKER, J. L., WHITE JR, William. Vida Cotidiana nos tempos bíblicos. São Paulo: Editora Vida, 1996.


Carlos Carvalho Cavalheiro
25.06.2015