domingo, 22 de dezembro de 2013

Prêmio Sorocaba de Literatura

A edição de 2012 do Prêmio Sorocaba de Literatura foi suspensa sob a alegação, naquela época, de que por se tratar de ano eleitoral inviabilizaria a realização do evento, tendo em vista que, segundo a Secretaria de Negócios Jurídicos "em período eleitoral é vedada a distribuição gratuita de bens valores ou benefícios por parte da administração pública".
Entretanto, o Prêmio Sorocaba de Música e o Concurso Jornalístico e Solidário, ocorreram normalmente naquele ano... Só o de Literatura passou pelo crivo rigoroso do "período eleitoral".
A Secretaria de Cultura e Lazer, naquele momento, respondendo à questionamento de minha parte junto ao CRUZEIRO, alegou que o Prêmio de Literatura era o único a ocorrer em época eleitoral, no mês de setembro! (Do Leitor, 01.11.2012). Não havia possibilidade em 2012 de transferir o Prêmio para data na qual não houvesse restrição devido ao calendário eleitoral?
Mas uma esperança foi aventada pela antiga Secretaria de Cultura e Lazer: "A Secretaria da Cultura e Lazer informa que o prêmio não foi cancelado, mas sim adiado para 2013". 
Bom, já estamos em dezembro de 2013... E o Prêmio de Literatura?
Deve-se levar em consideração que se trata de uma Lei municipal, a qual está sendo desrespeitada... pelo segundo ano consecutivo.

Carlos Carvalho Cavalheiro



sábado, 12 de outubro de 2013

domingo, 29 de setembro de 2013

sábado, 10 de agosto de 2013

Documentário "Em busca do Unhudo"

Desenho de Waine Martins

O documentário "Em busca do Unhudo", selecionado em Sorocaba para a fase Regional do Mapa Cultural Paulista de 2013, será exibido na cidade de Porto Feliz, no dia 23 de agosto de 2013, dentro das comemorações da "Semana do Folclore", realizada pela Prefeitura Municipal de Porto Feliz por meio da Diretoria de Cultura.
O documentário foi escrito e dirigido por Carlos Carvalho Cavalheiro e tem como produtor Ricardo Conrado Schadt.
Com entrevistas a pesquisadores e pessoas do povo, o documentário traça o perfil de uma lenda - a do Unhudo da Pedra Branca - de personagem fantástica e sua intervenção junto àqueles que ousam adentrar o seu "habitat". Com tempo total de 28 minutos, o documentário traz ainda a apropriação da lenda por duas cidades, Dois Córregos e Mineiros do Tietê, que tratam a questão sob ângulos diversos, ainda que possivelmente complementares.
A exibição do documentário será realizada às 19h30 na Estação das Artes, sita na rua Othoni Joaquim de Souza, s/n, próximo da Câmara Municipal de Porto Feliz. A entrada é franca.
Após a exibição do filme ocorrerá um bate-papo com o diretor e o produtor do documentário.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Artigos do historiador Adalberto Coutinho

Adalberto Coutinho de Araújo Neto é um historiador sorocabano que possui uma considerável produção, especialmente acerca do sindicalismo ferroviário. Fomos colegas do curso de História na UNISO, no final da década de 1990. Ele é autor do livro "Sorocaba Operária", título já consagrado. Abaixo, seguem alguns links de trabalhos seus que ele enviou para divulgação:

Entre a Revolução e o Corporativismo – dissertação de mestrado que trata da experiência sindical dos ferroviários da EF Sorocabana na década de 1930, além de sua formação como trabalhadores desde 1875, quando a ferrovia entrou em funcionamento, até 1940, limite do recorte temporal da pesquisa.
O Socialismo Tenentista – tese de doutoramento que trata de uma modalidade do socialismo reformista que existiu em São Paulo durante a década de 1930, que envolvia elementos socialistas que se tornaram socialistas, embora não tenham ingressado no PCB de Luiz Carlos Prestes.
Artigo “O socialismo tenentista” – Legião Cívica 5 de Julho, artigo sobre uma das organizações socialistas tenentistas existentes em São Paulo durante a década de 1930, publicado na Histórica, revista eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Artigo “Ferroviários e tenentes” – artigo publicado na Histórica, revista eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Trata principalmente do envolvimento dos ferroviários da EF Sorocabana com os tenentes durante a década de 1930.
Artigo “Contribuição para a história da participação dos imigrantes espanhóis nas lutas operárias de Sorocaba, na primeira metade do Século XX”. Artigo publicado na página da Editora Crearte.
Artigo “A Sorocabana e seus trabalhadores”. Artigo publicado na página da Editora Crearte.

A elegia de um caipira sul-paulista

          Em 2003, as então formandas em jornalismo Naiçara Garbin e Gabrielle Camargo escreveram um livro-reportagem sobre o folclorista Bento Palmiro e solicitaram a mim que fizesse um prefácio. O livro não chegou, infelizmente, a ser publicado... Quem sabe um dia... Porém, como faz 10 anos que escrevi o texto abaixo, quis compartilhá-lo:

  A identidade cultural do caipira do sul de São Paulo ainda permanece como uma incógnita a produzir comichões, vez ou outra, nas sinapses dos nossos neurônios. Há uma cultura sul-paulista? O que é e como se formou essa cultura?

   Muitos foram os que auxiliaram na revelação desses enigmas. Aluísio de Almeida, Waldemar Iglesias Fernandes, Cornélio Pires, Bene Cleto e tantos outros que souberam bem que a cultura paulista do sul do estado possui singularidades que a distinguem da desenvolvida em outras paragens.

   A cultura caipira, do ponto de vista antropológico, é o traço característico mais difundido pelo Brasil. Encontramos tais características em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, parte do Rio de Janeiro e do Paraná. Gerada do contato dos ibéricos com os índios, inicialmente em São Paulo, foi acrescentada posteriormente de elementos africanos, alemães, italianos etc... No sul de São Paulo ganhou características próprias até mesmo por influência na região da atividade econômica ímpar a partir de meados do século XVIII, o tropeirismo. 

   Coube a Bento Palmiro de Miranda, caipira de Cesário Lange, a difícil tarefa de cultor e difusor dessa cultura do sul paulista. Talvez nenhum outro tenha se dedicado tão profundamente a desvendar os meandros dessa identidade cultural.

   Folclorista, artesão, fabricante de violas, violeiro, modinheiro, fandangueiro, poeta popular, divulgador das virtudes dos alimentos vegetais... Tantas facetas de um mesmo homem são agora desvendadas pelo esclarecedor trabalho de Gabrielle Camargo e Naiçara Garbin, que realizaram importante pesquisa jornalística resultando na obra “A história do folclorista Bento Palmiro Miranda”.

   Com leitura leve, o livro das jovens jornalistas de Sorocaba encanta pela sincera poesia que permeia cada letra, denotando a paixão que nelas provocou o tema e, para felicidade nossa, expurgando os intrusos e enfadonhos estilos academicistas que costumam a aliciar aqueles que se dispõem a pesquisar e publicar seus estudos. 

  “A história do folclorista Bento Palmiro Miranda”, escrita de forma franca e entusiasta, é a reunião de informações reveladoras e únicas desse que foi um dos mais autênticos paulistas que o sol beijou a fronte. 

   Dormimos mais tranqüilos. Parte de nossa dívida foi resgatada. A biografia de um dos mais importantes folcloristas de São Paulo está agora acessível a todos. E escrita de forma encantadora. Quase uma elegia. Triste como toda elegia, mas também bela. Bela e triste como a figura de Dom Quixote ou como o Jeca de Angelino de Oliveira.

Carlos Carvalho Cavalheiro.
20.10.2003. 

Sugestão de frase para orelha: “Coube a Bento Palmiro a tarefa de cultor e difusor da cultura caipira sul-paulista”.

NEGRITUDE VELADA: AS IRMANDADES DE NEGROS DE SOROCABA



            Um fato que salta aos olhos, de imediato, ao se debruçar sobre as esparsas – e, por vezes, desencontradas – informações sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (e, posteriormente, de São Benedito também) de Sorocaba é o estado de penúria em que se encontravam os negros a ela associados.
            A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos desapareceu em Sorocaba em 1812, sendo insensivelmente substituída, conforme as palavras do historiador Aluísio de Almeida, pela Irmandade de São Benedito, como sociedade religiosa de negros sorocabanos, por volta da década de 1820.
            A levar em consideração as informações disponibilizadas por Aluísio de Almeida, os negros sorocabanos venderam a sua inacabada capela de taipa dedicada a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, por volta de 1770, ao Sarutaiá,[1] ficando sem orago por algum tempo. Ao que tudo indica, esse capitão-mor sabotava a construção dessa igreja, que ficava defronte à sua residência, “atirando certeiras bodocadas aos escravos que construíam as taipas da igreja do Rosário”, antes de propor aos negros a compra do templo em construção.[2] Dom José Carlos de Aguirre, em trabalho publicado em 1927, se reporta às certeiras bodocadas do Capitão-Mór Sarutaiá como “estímulo” ao trabalho dos negros, querendo com isso “vencer a indolência” dos mesmos. Na análise da reprodução, nesse referido trabalho, de uma petição de Salvador de Oliveira Leme (o Sarutaiá) ao Bispo de São Paulo, pode-se verificar o interesse daquele na posse e propriedade da igreja do Rosário que estava sendo construída. Argumentou na petição que pretendia aumentar a devoção das irmandades de homens pretos de Sorocaba, mas estes são “tam miseráveis, e faltos de fé, que se não atrevem a concorrer com coisa algúa por ser pouca, e pequena a esmolla, que tirão para os gastos dos folguedos, que todos annos fazem pelas ruas sendo o da Igreja tam limitado” (AGUIRRE, 1927, p. 09). Ao longo da petição, Sarutaiá argumenta que não irá mais contribuir para que os negros possam ter a sua capela, mas antes, que por ver a negligência destes, propõe que a dita igreja fique ao seu zelo e ao de seus herdeiros, devolvendo aos negros da Irmandade os cinqüenta mil réis com os quais estes iniciaram a construção do templo. Com a petição deferida, Sarutaiá se apossa da igreja e seus herdeiros, na realidade suas netas, darão início posteriormente à construção do Convento de Santa Clara.
            Os negros foram para a Igreja Matriz e lá permaneceram até 1797, embora na sua petição o Sarutaiá se comprometesse a consentir que os negros pudessem realizar “as suas festas na mesma Capella, porem nunca com o domínio de sua, mas sim por favor” (AGUIRRE, 1927, p. 09). Já como Irmandade de São Benedito[3], em 1825, utilizou a Capela de Bom Jesus dos Aflitos da Rua das Flores (possivelmente, por volta de 1865) sendo os irmãos acolhidos, posteriormente, na capela de Santo Antônio (ao que parece, a segunda capela desse santo, na atual Praça Nicolau Scarpa), local onde realizavam a festa de São Benedito no dia 06 de janeiro (ALMEIDA, 1950, 2002). Parece, portanto, que essa Irmandade – que começou como Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e tornou-se, depois, de São Benedito – não teve sua capela própria por muitos anos[4].
            Ainda recorrendo a Aluísio de Almeida, verifica-se que a construção em taipa era especialidade dos negros da Irmandade e que a construção de suas igrejas sempre parava quando chegava a necessidade de trabalhos outros, como o de carpinteiro, de ferreiro, de pintor etc (ALMEIDA, 1952). Isso demonstra que existia mesmo falta de recursos entre os negros de Sorocaba para viabilizar a construção da igreja de sua irmandade. Diferentemente ocorria nas regiões das Minas, como exemplo[5]. No entanto, a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Sorocaba foi abandonada inacabada em 1812 (quando não se tem mais notícias da Irmandade) e a de São Benedito não consegue, por sua vez, terminar o seu templo, eis que em 1873 fora construída uma torre, à guisa de igreja, no antigo teatro de Santa Clara (igreja que não foi benzida) sem, contudo, acabar a construção, conforme publicou o Almanak da Província de São Paulo para 1873.
            Mas qual era a função das Irmandades negras? Apenas permitir ao negro participar do culto católico? Segundo a historiadora Claudete de Sousa Nogueira (2008), as irmandades tinham como finalidade servir como sociedade na qual se agregavam negros (livres, escravos, forros) para apoio e ajuda mútua. Para Carlos Rodrigues Brandão (1986), as irmandades – com suas festas – recriavam, numa oposição de sentidos, o simbolismo de se coroarem a si próprios e não aos santos católicos, como faziam os brancos.
            No sentido dado por Claudete Nogueira, relacionamos a história da Irmandade de São Benedito de Porto Feliz, a qual comprou terreno anexo ao cemitério da cidade, no final do século XIX, para que os seus pudessem ser enterrados[6]. No sentido dado por Carlos Brandão, lembramo-nos do lendário Reisado estabelecido por Chico Rei, em Vila Rica (atual Ouro Preto). Como testemunha Carlos Góes (1994, p. 81), “no dia 6 de janeiro de cada ano o Rei, a Rainha e os Príncipes, vestidos com trajes opulentos, cobertos de suas insígnias e coroas, eram, com grande aparato, levados à Igreja do Rosário”.
            Por outro lado, as Irmandades eram uma forma de resistência (ainda que se entenda como resistência afirmativa) à escravidão. Além de servir aos negros como alívio aos “sofrimentos infligidos pelos brancos” (NOGUEIRA, 2008, p. 40), as irmandades funcionavam como forma simbólica de resistência na medida em que se procurava preservar os rituais e mesmo o seu panteão da impostura dos padrões religiosos católicos. Clóvis Moura (1989, p. 35) explicita que nesse processo de resistência

Sempre a defesa do dominado, do oprimido, do discriminado é ambígua. Aquele que não pode atacar frontalmente procura formas simbólicas ou alternativas para oferecer resistência a essas formas mais poderosas. Dessa forma o sincretismo assim chamado não foi a incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas, pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses para preservá-los da imposição da religião católica.

            Memorialistas e historiadores registraram a permanência das práticas oriundas dos rituais africanos dentro das Irmandades negras católicas, sobretudo na capital paulista. Paulo Cursino Moura (1980, p. 80), por exemplo, afirma que histórias de lendas e bruxarias eram atribuídas à “Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos, instituída em 1810” na cidade de São Paulo. É célebre a descrição ritualística que fez do enterro de negros da Irmandade, que, jogando punhados de terra sobre o cadáver, cantavam: “Zóio que tanto vê / Zi boca que tanto fala/ Zi boca que tanto ri / zi comeu e zi bebeu / Zi corpo que tanto trabaiô / Zi perna que tanto andô / zi pé que zi tanto pisô...”. Aluísio de Almeida registrou semelhante ritual existente em Sorocaba no passado, intercalado por “bum bum bum” feito com batidas de pés ou pilões que socavam a terra que cobria a sepultura.
            Tais práticas, como recriações e reelaborações de antigas tradições africanas – que permaneceram à guisa de resquício nuclear na formação de uma identidade – fornecem o subsídio necessário para a sobrevivência na correlação de forças que se estabelece dentro do contexto de domínio inerente à escravidão. Daí se depreender que a as relações entre negros e brancos naquele contexto histórico eram tensas e requeriam de ambas as partes, mas, sobretudo do negro, estratégias e dinâmicas que permitissem a sobrevivência da ritualística, mesmo que dentro da dinamicidade da reelaboração de símbolos e de significados.
            Ainda que pareça precipitado julgamento, a princípio pode-se estabelecer uma relação de estratégias similares entre a Irmandade de N. S. do Rosário e São Benedito com o arsenal de práticas que deram origem ao culto de João de Camargo. Esse taumaturgo, praticante de cultos ancestrais como o da Calunga, deu uma aparência católica aos seus rituais, com igreja similar ao modelo católico, com altar, santos e até com a promoção de procissões (CAVALHEIRO, 2010). Entretanto, afora o aspecto externo, o culto de João de Camargo continuou guardando resquícios da religiosidade ancestral africana. E os irmãos de São Benedito costumavam a chamá-lo de “padrinho” (ALMEIDA, 1974).
            Num contexto originado dentro de uma estrutura de dominação, é natural que as forças se digladiem em busca de maior espaço de atuação. De um lado, a ideologia cristã do branco nomeará os cultos africanos de “feitiçaria”, “macumba”, “bruxaria”, “magia negra”, numa tentativa de esvaziar qualquer conteúdo de religiosidade que se possa perceber. De outro, a continuidade da religião de seus ancestrais é uma forma do negro resistir. Segundo Moura (1988, p. 39), “dentro inicialmente de uma estrutura escravista, o cristianismo entrava como parte importantíssima do aparelho ideológico de dominação e as religiões africanas eram elementos de resistência ideológica e social do segmento dominado”.
            Por esse motivo, até os dias atuais, Irmandades negras cantam em seus congados para Zambi (Deus supremo para os bantos), para Beira-Mar (um dos nomes de Ogum) e, ao mesmo tempo, para Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Nossa Senhora Aparecida.[7] É curioso, ainda, o fato de os reis das Congadas usarem coroa e manto, símbolos esses do orixá Xangô.[8]
            As Irmandades católicas negras de Sorocaba promoviam, também, festas que reforçavam o caráter de identidade e de ressignificação social. Rivalizando, de certa forma, com a Festa do Divino (promovida pela elite branca), os negros da Irmandade do Rosário promoviam as congadas, nas quais havia a coroação de reis. Não é à toa, parece-nos, que a festa e folguedo eram promovidos no dia 6 de Janeiro, dia de Reis, costume que permanece na Festa de São Benedito (ALMEIDA, 1969). Ao realizar as festas e folguedos, os negros iam demarcando o seu território, estabelecendo a sua presença em diversos locais. É bom lembrar que tais ocorrências existiam paralelamente à escravidão e que o direito de ir e vir, de acesso e permanência num local, era restringido aos escravos. Participar da congada permitia a flexibilidade dessas regras. Porém, isso não de dava de forma passiva. Posturas municipais e repressão policial marcam a história dos batuques e congadas sorocabanos (CAVALHEIRO, 2006). As festas e folguedos dos negros, portanto, eram imprescindíveis para a manutenção de sua identidade e memória. Isso nem sempre era reconhecido. Talvez por isso, o bispo Dom Aguirre se manifestasse dizendo que os negros da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos de Sorocaba eram indolentes para a construção de sua igreja, mas não o eram para as orgias, as quais “não lhes faltavam ânimo” (AGUIRRE, 1927, p. 08). Isso porque a petição do Sarutaiá requerendo o domínio da antiga igreja dos negros dizia que a esmola que tiravam era pequena para as despesas dos folguedos que faziam todos os anos. Não entendiam, nem o Sarutaiá e nem Dom Aguirre (mais de dois séculos depois) como poderiam os negros dar mais valor ao folguedo anual do que à construção da capela da Irmandade.
            A par dessas manifestações, surge a possibilidade da criação de uma territorialidade negra. Isso parece ter existido na medida em que muitos depoimentos dão conta da aglomeração de negros, por exemplo, no entorno da Igreja de Santo Antônio, quando esta abrigava a imagem de São Benedito. Os escritores e historiadores Vicente Caputti Sobrinho e Milton Marinho Martins deixaram registradas suas recordações sobre as brincadeiras de roda de negros (como a capoeira) no antigo Largo Santo Antônio, em frente à Igreja de mesmo nome. Salerno das Neves, liderança entre os negros de Sorocaba, também realizava devoções religiosas naquele mesmo lugar. As festas de São Benedito ocorriam, na década de 1930, da mesma forma, naquele largo (CAVALHEIRO, 2010).
            A existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito em Sorocaba testemunha alguns aspectos interessantes da história do negro sorocabano. Comprova a resistência e a luta para poder continuar a cultuar suas divindades e promover a sua religião. Esclarece sobre as estratégias e a compreensão desse negro – que na época poderia ser livre, alforriado ou escravo – da conjuntura e das relações de dominação próprias do escravismo. Ver-se impedido de praticar a sua religião é algo tão cruel que bastaria rememorar que foi essa uma das imposições nazistas aos judeus. Por isso tudo, as Irmandades negras em Sorocaba denunciam, acima de tudo, a violência e o preconceito, que perduram até hoje, em relação à religiosidade de matriz africana.

Carlos Carvalho Cavalheiro
Licenciado em História e Pedagogia
Bacharel em Teologia
Especialista em Metodologia do Ensino de História e em Gestão Ambiental

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Aluísio de. Sorocaba, 3 séculos de História. Itu: Ottoni, 2002.
________________. História de Sorocaba. Sorocaba: IHGGS, 1969.
________________. Religião e Folclore. In Revista Investigações, nº 41. São Paulo: Departamento de Investigações, 1952.
________________. Curiosidades Sorocabanas. In Revista Investigações, nº 20. São Paulo: Departamento de Investigações, 1950.
________________. São Benedito em Sorocaba. In Cruzeiro do Sul, Sorocaba, 22 set 1971.
________________. Armadores e Artistas. In Cruzeiro do Sul, Sorocaba, 1º abr 1969.
AMARAL, Raul Joviano. Os pretos do Rosário de São Paulo. São Paulo: João Scortecci Editora, 1991.
AGUIRRE, Dom José Carlos de. Memória do Convento da Immaculada Conceição e de Santa Clara de Sorocaba. São Paulo: Escolas Profissionais do Lyceu Coração de Jesus, 1927.
AZEVEDO, Janaína. Tudo o que você precisa saber sobre Umbanda – Vol. 1. São Paulo: Universo dos Livros, 2008.
AZEVEDO CORRAL, Janaína. As sete linhas da Umbanda. São Paulo: Universo dos Livros, 2010.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Esses negros na rua, no meio da noite... In Os Negros do Rosário [Encarte de CD], 1986.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da Escravidão. Sorocaba: Crearte, 2006.
______________________. Vadios e Imorais. Sorocaba: Crearte, 2010.
GÓES, Carlos. Histórias da Terra Mineira. Rio de Janeiro: Garnier, 1994.
MOREAU, P. J. Os santos no folclore nacional. In Tribuna das Monções, 04 nov 1956.
MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora. São Paulo: Edusp / Itatiaia, 1980.
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1989.
____________. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
____________. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.
NOGUEIRA, Claudete de Sousa. Irmandades negras em Itu. In Memória Afro-brasileira em Itu. Campinas: DEMACAMP, 2008.



[1] Consta, segundo Aluísio de Almeida (2002, p. 79), que “A capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi por eles edificada, ou antes, socadas apenas as taipas, quando Salvador de Oliveira Leme, o Sarutaiá, depois capitão-mor de Itapetininga morando em Sorocaba e na frente da capela ou igreja, vendo que os pobrezinhos gastavam as esmolas em comes e bebes, resolveu acabar o templo à sua custa, cerca de 1770. Deu 50$000 em dinheiro aos Pretos, que fossem começar outra, ficando provisoriamente na Matriz, onde já havia outra Nossa Senhora do Rosário, dos brancos”.
[2] Sob o pseudônimo de Arnobius, Aluísio de Almeida nos conta esse fato, o qual já havia sido registrado pelo bispo de Sorocaba, Dom José Carlos de Aguirre, numa monografia sobre a “Memória do Convento da Immaculada Conceição e de Santa Clara”. O Sarutaiá, depois de atirar bodocadas aos escravos e de comprar-lhes a igreja, terminou a construção e dedicou-a a Santa Clara, na rua de São Bento. Ver: O Sarutayá, In Cruzeiro do Sul, 23 abr 1937, p. 01. É provável que o Sarutaiá não quisesse uma igreja de negros nas proximidades de sua casa. Fato similar ocorreu com a Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo, ameaçada de mudança de local em diversas oportunidades simplesmente porque era “igreja de pretos”, conforme testemunha Amaral, 1991, p. 145. Na versão do Bispo Dom Aguirre, as bodocadas eram dadas como “estímulo” para que os negros trabalhassem na construção da Igreja.
[3] Aluísio de Almeida acredita que a Irmandade de São Benedito tenha surgido em Sorocaba próximo à data da Independência (1822).
[4] Os negros da Irmandade de São Benedito utilizaram a Igreja de Santo Antonio por duas vezes, primeiro no início da Irmandade e, posteriormente, quando a capela de Bom Jesus dos Aflitos da rua das Flores ficou em ruínas, conforme Almeida, 1971.
[5] Na cidade de Ouro Preto, por exemplo, há duas igrejas de negros: a de Santa Efigênia (ou Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz), que levou 60 anos para ser construída (1730 a 1790) e a de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (1785).
[6] Segundo o historiador Romeu Castelucci em 1896 a Câmara Municipal de Porto Feliz regulamentou o enterramento de pessoa no cemitério da Irmandade de São Benedito.
[7] Raul Joviano Amaral (1991, p. 32) explica que “ninguém desconfiava que sob a proteção de Nossa Senhora do Rosário estava a devoção a Iemanjá e que, sob a tutela de São Benedito, executava-se todo o mágico preceito dos cultos aos deuses-Orixás”. É interessante notar que o poeta e historiador portofelicense Pedro José Moreau anotou uns versos dedicados à São Benedito que diziam: “Meu senhor São Benedito / a vossa casa cheira / cheira a cravo, cheira a rosa / cheira a flor de laranjeira”. Essa cantoria é encontrada em alguns congados. Versos bastante similares, com exceção do inicial, compõem um ponto cantado na Umbanda: “Cosme e Damião / a sua casa cheira / cheira a cravo, cheira a rosa / e a botão de laranjeira” (Ver: MOREAU, 1956, p. 04, e, AZEVEDO, 2008, p. 111). Há versões para Nossa Senhora do Rosário, também.
[8] Segundo a pesquisadora Janaína Azevedo Corral, “a coroa e o manto a Xangô pertencem, pois Xangô é o Rei” (AZEVEDO CORRAL, 2010, p. 106). Por esse motivo, a pesquisadora associa, também, a Folia de Reis com esse orixá. A coroa é símbolo de outro orixá importante: Oxalá.

O Operário: artífice do progresso.


                Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
(Operário em Construção, Vinícius de Moraes)

                Sorocaba conheceu no final do século XIX outro personagem que iria contribuir para a construção do progresso material da cidade: o operário. Ao lado dos bandeirantes, dos tropeiros e dos escravos na construção da nossa história, esse personagem surge com as primeiras fábricas, modificando, gradativamente, as relações sociais e econômicas.
                Nessa época Sorocaba incorpora o discurso da modernidade e do progresso. A ideologia da cidade burguesa e civilizada contagia a todos. Amiúde, os símbolos dessa modernidade são citados em jornais – que também se tornam signos do progresso – e passam a ser idolatrados como indicadores únicos do sucesso e da felicidade de todos.
                O operário também será contaminado pelo mesmo discurso: em suas manifestações, ele enaltecerá o progresso industrial da cidade, os melhoramentos urbanos, o surgimento de escolas... Contudo, o fará de forma, muitas vezes, crítica; eis que tal progresso não o atingia. É público e notório que as condições de vida dos primeiros operários eram bastante precárias. Trabalhavam exaustivamente em condições subumanas e o que ganhavam como salário, mal diferenciava o valor do prato de comida e do copo de água dado ao escravo para que este não morresse. O escritor sorocabano Jacob Penteado, no seu livro Belenzinho, 1910, testemunha que sua mãe – assim como os demais operários – trabalhava numa fábrica têxtil em Sorocaba, das cinco horas da manhã às 20 horas!
                No entanto, como principal artífice do progresso material da cidade, o operário se organiza especialmente em associações operárias, anarquistas e comunistas, e parte para a luta de conquistar parte desse progresso para a sua própria realidade. Assim, o jornal O Operário publica manifestação em que diz: “Operários, não obstante nestes últimos tempos estão-se fazendo sentir os primeiros echos de liberdade, mostrando a alguns patrões que neste século nós, os operários, não podemos ser tão maltratados como somos, ainda tem patrões que continuam com toda a sorte de violência, a maltratar seus operários, não só na mesquinha remuneração – e às vezes com multas por cima, – como também no demasiado trabalho, sobre o que, pouco a pouco, vão massacrando os vis operários!...”
                Dessa forma, Sorocaba era uma cidade visada pelas organizações operárias, sobretudo anarquistas e anarcossindicalistas, de início, e comunistas, a partir da década de 1930. A redução da jornada de trabalho, por exemplo, ligada às manifestações do dia 1º de Maio, tiveram início já em 1894, quando os anarquistas Alexandre Levy e Angelo Belcote foram presos afixando cartazes conclamando os trabalhadores sorocabanos a participarem das manifestações do dia do Trabalhador. No século XX, mais precisamente em abril de 1910, o orador anarquista Oreste Ristori realizou uma palestra na cidade. Os operários fizeram greves, passeatas, fundaram escolas para operários, elaboraram abaixo-assinados, enfim, lutaram para que o progresso da cidade fosse também o seu como classe social. E foram vitoriosos: conquistaram direitos e obtiveram melhorias das condições de vida e de trabalho.

Carlos Carvalho Cavalheiro

Julho de 2010.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Professor de História publica artigos sobre negritude em Porto Feliz

http://www.jornalrol.com.br/cidadania/index.php?option=com_content&view=article&id=2560:historia&catid=174:redacao&Itemid=44

O termo negritude é usado para designar tudo aquilo que se refere a identidade do negro no Brasil. História, memória, costumes, manifestações culturais, traços da religiosidade, enfim, qualquer informação que permita a construção política de um identidade cultural.


Com essa perspectiva o professor de História e escritor Carlos Carvalho Cavalheiro vem publicando, desde janeiro de 2013, uma série de artigos no jornal "Tribuna das Monções", sobre aspectos da negritude portofelicense.



São temas variados como a escravidão na cidade, a história da capoeira em Porto Feliz, o costume do batuque e até a discriminação racial (ou étnica).

Dessa forma, muitas informações sobre a participação dos negros na construção da História de Porto Feliz acabam sendo realçadas, contribuindo tanto para a formação dessa identidade como para a própria cidadania.


O professor Carlos Carvalho Cavalheiro leciona a disciplina de História na EMEF. Coronel Esmédio desde 2006. Participou da Comissão do Centenário da Escola em 2008, recuperando fotos antigas, sugerindo logotipo do centenário e realizando a exposição comemorativa no Museu Histórico e Pedagógico das Monções.



Participou ainda do Conselho Municipal de fiscalização do Fundef (Fundo de Manutenção e desenvolvimento do Ensino Fundamental) em 2006.Por dois anos seguidos (2010 e 2011) orientou alunos da EMEF. Coronel Esmédio na Olimpíada Brasileira de História do Brasil, chegando, nas duas oportunidades, na penúltima fase.



Ainda em 2011, foi um dos professores responsáveis pela campanha de produção de hortaliças por alunos da EMEF. Coronel Esmédio, com o intuito de fornecer alimentos a Cidade dos Velinhos e Participou da Comissão julgadora do Mapa Cultural Paulista (Literatura).



A convite da "Tribuna das Monções", jornal com o qual colabora desde 2007, produziu os artigos sobre a História e Memória dos afrodescendentes de Porto Feliz, os quais deverão ser publicados, pelo menos, até o final deste ano.

domingo, 10 de março de 2013

A pseudo-teologia de Marco Feliciano



                Causou certa celeuma a nomeação do deputado federal Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Isso porque, atribui-se ao deputado declarações de caráter discriminatório em relação a etnias e a sexualidade. O deputado afirma não ser nem racista e nem homofóbico.[1]
                Não vou tratar aqui dos aspectos políticos de tal nomeação. E nem os eleitores do deputado em questão. E, muito menos, vou procurar desmerecer a sua pessoa. Isso tudo por convicções minhas: o sistema eleitoral brasileiro representa o modelo de organização burguesa (“democracia” representativa indireta, tripartição de poder, ideia do voto como expressão máxima e única da participação política da população em geral, etc.), conquistado por meio da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos; sendo reformulado e reformado ao longo do tempo. Sendo uma construção burguesa, obviamente interessa apenas à burguesia, por mais que se façam propagandas ideológicas colocando a eleição como “festa da democracia”. Aceitar essa ideologia é comprar o conjunto completo: nomeações de caráter político, interesses partidários, coligações que possam ser consideradas espúrias. Particularmente, não aceito tal conjunto e acredito ser inócua a discussão de suas consequências por aqueles que o aceitaram. Em suma, é contraditório aceitar esse modelo de democracia burguesa e se escandalizar com o que lhe é inerente![2] Eu não aceito o modelo burguês de democracia. Por outro lado, respeito a humanidade que existe em qualquer pessoa. Por isso, não desmereço a pessoa em si. Debato ideias, não combato indivíduos.
                Feitas tais considerações, resta-me informar, então, qual será o caráter deste texto. Há tempos incomoda-me algumas ideias e considerações, atribuídas ao deputado Marco Feliciano, especialmente sobre a suposta “maldição” bíblica que recai sobre os negros. Antes, seria salutar entender o meu interesse pela Teologia, a qual me levou a frequentar faculdades até a obtenção do grau de Bacharel. Há quase 20 anos, ouvi estarrecido um rapaz afirmar, numa reunião em que eu estava presente, que era público e notório na Bíblia a maldição enviada por Deus aos negros. Por mais que eu argumentasse, como estudante de História na época, com informações históricas e antropológicas, tive de reconhecer que no campo da Teologia eu não possuía conhecimentos que pudessem servir para desmentir aquelas aberrações ditas pelo rapaz e, como estivéssemos cercados de outras tantas que não possuíam tal conhecimento – ou de cristãos desinformados – aquela afirmação restou como verdade.
                Logo reconheci que deveria estudar Teologia para que pudesse entender melhor esse campo do conhecimento e angariasse os argumentos necessários para um debate. Pensava eu desse modo porquanto não poderia aceitar a ideia de que Deus tivesse amaldiçoado um povo por conta de sua cor de pele. Mesmo porque eu sempre ouvira que a Bíblia diz que “o filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai levará a iniquidade do filho” (Ez. 18.20). Ou seja, ninguém paga pelo pecado de outro. Portanto, se Deus amaldiçoou alguém no passado, os filhos não deveriam pagar por essa “maldição”.
                Anos depois, já formado teólogo pelo IBECC, encontrei na internet supostas declarações do deputado e pastor Marco Feliciano acerca da hipotética maldição de Deus sobre os negros. Duas em especial me chamaram a atenção e é sobre elas que vou discorrer teológica e historicamente para refutar tais ideias. Repito: não combato pessoas, apenas discuto ideias. As frases atribuídas ao deputado são: “Afrodescendentes são amaldiçoados. Não sou eu quem digo, é a Bíblia”, e, “Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato. O motivo da maldição é polêmica”.
                Nas duas frases o que ressalta é a convicção de que a conjectura maldição sobre os negros (africanos ou afrodescendentes) esteja escorada e explícita no texto bíblico. Apesar de não apresentar o texto em que se expõe essa maldição, há uma pista: um ancestral de Noé que foi amaldiçoado.
                Bem, é evidente, portanto, que se trata do mito hamista ou camista, que em alguns momentos várias pessoas enxergaram como se tratando de escurecimento de pele, por meio da maldição de Noé sobre Cã (na realidade, sobre Canaã). O relato está em Gênesis, capítulo 9, versículos de 20 a 28. Em resumo, Cã, um dos filhos de Noé, viu seu pai embriagado e nu, advertindo seus irmãos Sem e Jafé, os quais foram até Noé e cobriram a sua nudez com um manto. Quando Noé acordou e soube do acontecido, derramou sobre Canaã, filho de Cã, a sua maldição dizendo: “que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos” (Gn. 9.25).
                Não existe qualquer informação sobre a cor de pele de Canaã ou de Cã. Nada. Somente a palavra “escravo” que, diga-se, na época não importava em cor de pele e nem em questão de procedência. Mas foi utilizada sim, durante a Idade Moderna, na invasão europeia à África, como justificativa para dominação, a partir do século XV. Sobre esse assunto discorreram vários pesquisadores, como Sérgio Buarque de Holanda, Kabenguele Munanga, Clovis Moura, Eduardo Bueno entre tantos outros. Teoria utilizada no século XV, mas que é refutada nos dias atuais em que se reconhece que o escurecimento da pele decorre do clima da zona tórrida e não de qualquer maldição divina.
                O dr. Gleason Leonard Archer Junior, teólogo e educador, falecido em 2004, esclarece mais sobre a suposta maldição sobre os negros africanos:

Cão tinha outros filhos além de Canaã, a saber, Cuxe, Mizraim e Pute (Gn 10.6); entretanto, a penalidade foi aplicada apenas em Canaã, o ancestral das cananeus da Palestina, e não em Cuxe e Pute, que provavelmente se tornaram os ancestrais dos etíopes e dos povos negros da África (ARCHER JR., 1997, p. 93. Grifo nosso).

                É evidente que a descendência de Canaã viveu na terra de mesmo nome, que, por sinal, não fica na África! Provavelmente, como ainda ensina Archer Junior, o cumprimento da profecia (maldição) de Noé se deu quando Josué (representando os descendentes de Sem), em 1400 a.C., venceu os cananeus e, também, quando os persas (provavelmente descendentes de Jafé) dominaram a Fenícia e os povos cananeus.
                Acreditar, portanto, que o simples fato de ter a palavra “escravo” na maldição de Noé a Canaã seja o suficiente para associá-la aos africanos é retroceder a uma mentalidade ultrapassada da Idade Moderna e sem qualquer escora para os dias atuais. Afinal, a escravidão “era praticada por todos os povos antigos de que temos registros históricos: egípcios, sumérios, babilônios, assírios, fenícios, sírios, moabitas, amonitas, edomitas, gregos, romanos, e todos os demais” (ARCHER JR., 1997, p. 93). Portanto, escravidão não é prerrogativa e nem exclusividade africana!
                Ademais, admitir que os negros sejam amaldiçoados por Deus é o mesmo que desconhecer a Bíblia como um todo, pois o próprio Deus designou um Anjo para ordenar a Filipe encontrar o eunuco etíope a fim de que este pudesse ser batizado e salvo!  (At. 8.26 – 39). A Bíblia de Jerusalém ensina que “A ‘Etiópia’ [descrita no versículo em destaque] começava além da primeira catarata do Nilo: corresponde aqui, à Núbia ou Sudão egípcio. Nela o poder era exercido por uma rainha, designada pelo título de ‘Candace’” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1995, nota de rodapé, p. 2063). Núbia, Sudão, Etiópia... territórios africanos e de negros! Se fossem os negros (ou africanos) amaldiçoados, por que Deus designaria um Anjo e um evangelista para pregar-lhes a “Boa Nova”?
                As falsas justificativas empregadas, dizendo que a África é amaldiçoada com doenças, miséria, guerras e fome, demonstram falta de conhecimento do continente africano e de sua História. Talvez esteja aí, escancarada, uma das necessidades da aplicação urgente da Lei 11645/08 (antiga 10639/03) nas escolas. Esquecer-se de toda a exploração decorrente das invasões europeias na África e culpar os males que porventura existam no continente a uma suposta maldição divina é uma atitude cômoda, no mínimo. Afinal, se se trata de uma maldição divina, o que podemos fazer? Qual a nossa parcela de culpa por esse quadro? Qual a nossa responsabilidade diante disso?
                Em suma, continuar a difundir ideias de maldição a africanos e negros em geral, justificando a pobreza e miséria que por vezes haja em alguns lugares da África, não é praticar a boa Teologia e nem exercitar os conhecimentos de História. É, isso sim, fabricar justificativas para reforçar a discriminação e o preconceito; despindo a humanidade do indivíduo por conta da tonalidade de sua tez! É praticar, a meu ver, uma pseudo-teologia.

Carlos Carvalho Cavalheiro.
10 de março de 2013.




[1]Marco Feliciano, que já deu declarações contra negros e homossexuais, voltou a negar que seja racista ou homofóbico. E disse que vai respeitar as minorias. ‘Aqui estão em jogo todos os projetos que beneficiam, protegem, ouvem as minorias. Isso que vai acontecer’”. Ver: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/03/comissao-de-direitos-humanos-elege-marco-feliciano-como-presidente.html
[2] O próprio partido do deputado Marco Feliciano chegou a apoiar o PT e o PSDB ao mesmo tempo. Ver: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=Bu1vSfitMu4#! Segundo informações do próprio deputado, no vídeo em destaque, o partido dele apoiou em São Paulo o candidato José Serra (PSDB) e, no resto do país, a então candidata Dilma.

Bibliografia:
ARCHER JR., Gleason L. Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas. São Paulo: Editora Vida, 1997.
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1995.
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Vadios e Imorais. Sorocaba: Editora Crearte, 2010.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Há 20 anos publiquei meu primeiro texto... (1993 - 2013)

As pernas do tempo são realmente velozes! Em janeiro de 1993 publiquei meus primeiros artigos, contos, poesias e cartas de leitor nos jornais "Cruzeiro do Sul" e "Diário de Sorocaba". Logo depois, brotaram textos em jornais culturais como o "Pedaços" (produzido pelo amigo Valdecy Alves), "Folha da Cidade" e "Sepé Tiaraju" (este último, batizado por mim).
Lá se vão 20 anos... Por acaso rememorei a data por conta de um artiguete que fiz discorrendo sobre o livro "Sacy-Pererê - Resultado de um Inquérito", do Monteiro Lobato. Dias atrás encontrei o texto e tomei consciência da passagem dos anos. 
Quanta coisa aconteceu desde aquela época! 1991... Acabara de sair do Ensino Médio, cursado na ETE Prof. Rubens de Faria e Souza, onde tive uma breve experiência de militância no movimento estudantil. Ajudei a formar o "Grêmio União Democrata", nome dado pelo Marcelo de Souza. Particularmente, não gostava muito desse nome, parecia escola de samba ou time de futebol. No entanto, fiz tantas exigências para a formação desse Grêmio (uma delas, por exemplo, a de não ter "cargos" e nem "diretoria") que acabei relevando. Foi uma experiência marcante, tanto para mim quanto, penso, para outros. Desse grêmio, por exemplo, saíram militantes e até dois vereadores de Votorantim: o citado Marcelo de Souza e Joãozinho Queiroz.
Passeatas anti-Collor, no centro da cidade de Sorocaba (lembro-me de ter participado de duas que culminaram em manifestações na Praça Cel. Fernando Prestes) e uma em Votorantim.
Depois dessa fase, lembro-me de frequentar a Biblioteca Municipal no horário noturno. Na década de 1990, a Biblioteca Municipal de Sorocaba estava instalada num prédio ao lado da antiga "Concha Acústica" (nem existe mais). Ali se reuniam leitores, questionadores, pensadores... Lá foi gestado o jornal "Sepé Tiaraju" e de lá saíram textos para o mesmo. 
Promovi uma exposição de desenhos naquela Biblioteca, intitulada "Bem aventurados os anônimos". A intenção era promover o trabalho de dois desenhistas que considero muito bons: Vanderlúcio e Waine Martins.
Foi nessa época que tomei coragem e comecei a enviar meus textos para os jornais de circulação diária pela cidade. Grande emoção ao ver o primeiro conto publicado: "O violinista da beira da estrada", que eu compusera uns anos antes.
"Teatro-Off", no final da rua XV de Novembro. Ajudei a promover um desafio de cururu naquele local. Assisti a muitas peças ali. Lembro-me do Álvaro Ramos (acho que na época ele ainda não era o "Mestre"), que eu conhecia do grupo "Olho da rua", tomando conta do pedaço. Flávio Alves, irmão do Valdecy, tinha um grupo que se apresentava ali. Acho que era "Livre pra voar", se não me engano. Excelente ator. Foi no Teatro Off que eu o conheci. Nessa mesma época conheci, também, Mário Pérsico e, ainda, Claudio Rangel.
Márcia Mah ajudou - ou fez tudo, eu não sei ao certo - a produzir um livro de poesias eróticas. Eu tenho um exemplar!!! Raridade.
Parece que o Teatro Off surgiu de uma dissidência do Espaço Cultural dos Metalúrgicos, da Rua da Penha.
Não tenho muita certeza, mas creio que sim. O "Diário de Sorocaba" ficava com a redação aberta durante a noite - não sei se ainda fica - e costumava levar textos para lá. Numa dessas idas eu conheci a senhora Filomena Magda Racca, amizade que perdura até hoje.
Tempo bom. Tempo de sonhos. Tempo de juventude! Agora sei o que sentia o poeta quando exprimia a saudade dos seus vinte anos...

Carlos Carvalho Cavalheiro
28.02.2013

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Saci Pererê: um mito racista?


 

                Há tempos li um artigo que condenava o mito do Saci “lobatiano” por ser esse fruto do racismo. Não entendi. Afinal, até que se prove o contrário, Monteiro Lobato não criou o mito do Saci (aliás, se ele o tivesse criado, este não seria, a rigor, um mito) e nem lhe deu uma forma específica. Talvez com a Cuca, a qual ele deu feições de réptil. Mas o Saci como moleque negro, de uma perna só e barrete vermelho na cabeça, já fazia parte do imaginário popular no ano de 1917, quando Monteiro Lobato resolve abrir um “inquérito” sobre essa figura mitológica.

                Existem sim algumas variantes apresentadas no próprio livro. Há quem o tenha visto com um pé de cabra. Outro que lhe tenha metido um par de chifres na testa (como se a carapuça não fosse o suficiente para enfeitar-lhe a cabeça); outro que o colocou com duas pernas, sendo manco de uma delas. Isso tudo, no entanto, só demonstra uma verdade: o Saci é um mito em eterna construção. Já é quase consenso que surgiu como um mito indígena. O escritor Olívio Jekupé defende incessantemente essa tese, mostrando que o mito era um índio protetor da floresta e dos animais, chamado Kamba’i ou Jaxi Jatere. Tal fato já era aceito – ou ao menos suspeitado – já no século XIX. O pesquisador Adelino Brandão cita o testemunho de Couto de Magalhães, o qual registrou que o saci era “um pequeno tapuio, manco de um pé, com um barrete vermelho e uma ferida em cada joelho”.[1] No próprio “Inquérito” aberto por Lobato, aparece como origem do mito que este “vem do autochtone que lhe deu o nome actual, corruptela de ‘çaa cy perereg’”.[2] Adelino Brandão acrescenta ainda que “o saci nativo [dos índios] era uma ave, companheira do Caipora, tinha o corpo de pássaro e uma perna só”.[3] Do tapuia de duas pernas ao caboclinho e deste para o negro unípede, o processo de transformação visual foi resultante da reelaboração e recriação do mito, aliás, uma dinâmica constante e esperada em toda criação mitológica.

                Desse modo, dentro de um processo natural, o mito sofre influências das outras culturas com as quais vai tendo contato. Outra vez recorrendo ao Inquérito do Monteiro Lobato, este diz que, com certa ironia, que o Saci “acabará ainda soffrendo a influencia do italiano”.[4] E o pesquisador José Carlos Rossato ensina que “é muito maior do que se pensa a influência lusitana do nosso Saci”,[5] recorrendo às histórias portuguesas do “Fradinho da Mão Furada” para relacioná-lo à construção imagética do Saci brasileiro. Aliás, brasileiro mesmo, pois o próprio Rossato explica que “Ele [o Saci] não é privilégio brasileiro. Outros países também conhecem o Saci”.[6] E acrescente-se ainda o que diz Brandão a esse respeito: “Não é mito exclusivamente brasileiro. Também faz parte das tradições argentinas, do Uruguai, do Paraguai e, praticamente, de todos os folclores sul-americanos”.[7]

                Certo é que Monteiro Lobato ajudou a difundir a imagem do Saci dentro das características gerais que já compunham o mito nos idos de 1917, data do seu “Inquérito”. A variação de aspectos secundários é comum em todos os outros mitos. Não há sequer uma história de assombração ou de seres fantásticos que não sofra variações. No entanto, parece que é exatamente nesses aspectos secundários que se escoram aqueles que defendem ser o Saci um mito racista. O Saci aparece com chifres na cabeça e um porrete na mão, na ilustração da capa do livro “Sacy-Perêrê – Resultado de um Inquérito”. Pois então alguém já supôs que isso fosse a demonização do mito e, pior, que o intuito do Lobato era exatamente promover a desqualificação do negro associando-o a um “demônio”. A imagem da capa é resultante de um dos depoimentos dados no “Inquérito”, o qual apresentou o Saci com chifres. Associação com o demônio cristão? Pode ser. Mas não foi o Saci de chifres que Monteiro Lobato difundiu e usou em suas obras, especialmente as infantis. O Saci do Sítio do Picapau Amarelo não possuía chifres. Mas está na capa do livro... Sim, está. E os chifres estão, ainda, na cabeça de imagens de Exu. Seria este um orixá racista por portar chifres?

                Aliás, há muito mais relações entre a imagem atual do Saci com a mitologia africana. Um exemplo disso é o auxiliar do orixá Ossain ou Ossaim, chamado Aroni. Este, para quem ainda não conhece, é “um misterioso anãozinho perneta que fuma cachimbo (figura bastante próxima ao Saci-Pererê), possui um olho pequeno e o outro grande (vê com o menor) e tem uma orelha pequena e a outra grande (ouve com a menor). Muitas vezes Aroni é confundido com o próprio Ossaim, que, segundo dizem, também possui uma única perna”.[8] O pesquisador Ademir Barros dos Santos já havia alertado para tal semelhança.

                E como fica agora? Aroni, por ser responsável “por causar o terror em pessoas que entram na floresta sem a devida permissão”[9], anão perneta, com olhos e orelhas irregulares (uma maior do que a outra), também é um ser que possa ser associado ao demônio e, por isso, e pelo fato de ser negro africano, é um mito racista? Se não, por que o Saci o é? Simplesmente porque Monteiro Lobato ajudou a divulgar o mito? É somente por isso, ou seja, pela origem? Se vem de Lobato, só pode ser racista? É fato que Monteiro Lobato defendia a eugenia. E, caso não saibam, a ciência da época dele também. Ele estava em sintonia com o que havia de mais avançado no pensamento da época. Anacronismo sem sentido julgar um pensamento do passado com parâmetros do presente.

                É possível que alguns ficassem espantados em saber que Monteiro Lobato, em relação ao Saci, disse, pela boca do Tio Barnabé, que “O Saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça”.[10] Maldade pequena, ou seja, traquinagem. E traquinagens é com ele mesmo. O folclorista e escritor Waldemar Iglésias Fernandes recolheu uma história em Sorocaba na qual “o Saci apareceu numa casa e ‘garrou a fazer estrepolias, correndo dentro da casa e dando aqueles assobios de deixar todo mundo louco!”.[11] Para o renomado folclorista Alceu Maynard Araújo, o Saci “não é maldoso, porém brincalhão como toda criança é”.[12] Para muitos, o Saci é uma espécie de “Gnomo” – esse, europeu – que é “bastante brincalhão e adora pregar peças nos homens”.[13]

                Em outras versões, o Saci ganhou a sua carapuça de Deus para que pudesse “tornar-se invisível aos olhos do Diabo”.[14] Portanto, a associação do Saci com o demônio não é unânime e é tão sem sentido quanto associar o orixá Exu ou mesmo o ajudante de Ossaim, Aroni, com o diabo cristão. Dessa forma, se há quem associe o Saci ao diabo, também há quem o faça com os orixás (se não com todos, com alguns pelo menos). Isso não torna os orixás uma crença ou mito racista. Também não deve, por analogia, transformar o Saci numa representação similar.

                É possível mesmo que os negros tenham dado a forma final no aspecto visual do Saci como hoje o conhecemos. Essa é a opinião de muitos pesquisadores. Adelino Brandão, por exemplo, salienta que “é a figura do moleque sob a qual aparece o Saci atual. A influência africana aí nos parece fora de discussão”.[15] Monteiro Lobato também é da opinião de que o mito “soffreu o influxo africano, passando de caboclinho a molecote”.[16] E Pierre de Oliveira concebe que “o saci por exemplo é um Gnomo que veio junto com os negros da África”.[17]

                Coincidentemente – ou nem tanto – o mito como o conhecemos hoje tem sua gênese exatamente no auge da escravidão no Brasil, do século XVIII ao XIX.[18] O jornalista Mouzar Benedito vê nessa caracterização do Saci uma estratégia de sobrevivência dentro das relações escravocratas. Assim, tudo o que ocorria fora da conformidade do senhor, era atribuído ao Saci e, dessa forma, segundo o jornalista, os negros escravizados escapavam muitas vezes dos castigos. Nas próprias palavras de Mouzar Benedito, “Era algo muito esperto da parte delas porque, por exemplo, elas sabiam que se errassem a mão em uma comida, seriam castigadas porque o senhor de escravos não tinha nenhum pouco de bondade. Então quando erravam no sal diziam ‘Ah, passou o Saci aqui e jogou sal na comida’. Em uma revolta na senzala, o líder que a comandasse, quando era novamente dominado respondia ao senhor que perguntava quem havia iniciado (caso se apresentasse, o líder seria no mínimo, marcado a ferro) e ele dizia que foi o negrinho de uma perna só que havia passado por lá”.[19]

                Assim, o Saci foi aliado dos negros durante a escravidão. Ouso dizer que mais do que aliado. Foi a cristalização dos anseios dos escravizados em construir um mito heroico que burlasse o sistema escravista sem que o senhor branco pudesse fazer nada em relação a isso.

                O Saci é todo símbolo da liberdade. Cavalga os redemoinhos de vento – símbolo maior da liberdade – controlando-os e indo de um lado para o outro sem que ninguém consiga impedi-lo. O vento é incontrolável. Jesus disse: “O vento assopra onde quer” (Jo 3.8). O Saci tem a liberdade da locomoção, mesmo sendo perneta. Aliás, há quem diga que corre tão rápido que aparenta ser perneta, ainda que não seja.[20] “Corre como um raio, aparece e desaparece, cresce e diminui”.[21] Carrega na cabeça uma carapuça ou barrete que também é símbolo da liberdade. Adelino Brandão, já citado largamente aqui, diz que “o barrete frígio, símbolo da liberdade e dos ideais republicanos, costuma ser vermelho [como o do Saci] também”.[22] E continua, nos ensinando que “O barrete do Saci, por seu turno, ainda se presta a outras considerações, além das vistas. Muitos séculos antes de Cristo, nas saturnais romanas, encontramos o “pileus” – carapuça de cor vermelha que simbolizava a liberdade. O pileus era também o emblema do escravo fôrro segundo os costumes da antiguidade latina”.[23]

                Não é à toa que todas as histórias sobre Saci dizem que quem obtiver a carapuça dele será seu senhor. Monteiro Lobato dizia, pela boca de Tio Barnabé, que “a força dele [Saci] está na carapuça, como a força de Sansão estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci, fica por toda a vida senhor de um pequeno escravo”.[24] Pudera, pois a carapuça é o que simboliza a sua liberdade! Por isso, “embora negro, o Saci, pelo barrete vermelho que ostenta, é livre. Por isso se vinga igualmente dos brancos, enfernizando-lhes a vida”.[25]

                E é, certamente, o único negro que durante a escravidão podia azucrinar – ou infernizar, como disse o Adelino Brandão – a vida do branco sem que houvesse consequências disso para ele. Ninguém podia açoitar o Saci ou amarrá-lo a um tronco. O máximo que poderia ser feito contra ele era capturá-lo num redemoinho de vento e engarrafa-lo. Mesmo assim, deveria tirar-lhe a carapuça. Caso contrário... “perturba a vida doméstica, apagando o fogo e queimando os alimentos. Espanta também os animais. Assusta os viajantes, pedindo fumo”[26]; e não contente, sai “assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas das sextas-feiras”.[27] Por fim, salta “na garupa dos cavalos dos viajantes”.[28]

                Para completar o quadro, o Saci usa dos furos das suas mãos para fraudar a crueldade do sistema escravista. É comum os relatos de fazendeiros que obrigavam a seus escravos carregarem brasas nas palmas das mãos com a finalidade de acender charutos ou cigarros. Nerize Quevedo Portela descreve uma cena como essa: “E o Coronel fumava seu charuto e a toda hora ele chamava uma escrava e dizia: Ô coisa preta – era como ele chamava seus escravos. Traz brasa para acender meu charuto, anda rápido! Então o coitado do escravo ou da escrava já tremia, porque sabia que tinha que trazer na palma da mão. Ele só aceitava se fosse na palma da mão. Os coitados sofriam demais”.[29] Para quem acredita que se trata apenas de uma obra de ficção, o relato Maria Arlete Ferreira da Silva, inserido no RELATÓRIO DO GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA (2005-2010), não deixa dúvida na existência dessa prática durante a escravidão: “a tia Salomé, foi escravizada e tinha as marcas no corpo, a orelha rasgada, a mão queimada, pois era obrigada a levar a brasa na mão para o seu senhor acender o cigarro de palha e muitas vezes ficava segurando a brasa até que ele fizesse o cigarro para depois acendê-lo”.[30]

                O Saci tinha seus furos nas mãos e com eles satirizava a tentativa dos senhores brancos de impor a ele o mesmo castigo que impunham aos seus escravos. “Se encontra ainda alguma brasa, malabarisa com ella e ri-se perdidamente quando acontece cahir a brasa pelo furo das mãos”, informa Monteiro Lobato.[31] O mesmo Lobato acrescenta: “Tem as mãos furadinhas bem no centro da palma; quando carrega brasa, vem brincando com ela, fazendo ela passar de uma para a outra mão pelo furo”.[32] E Adelino Brandão finaliza: “Graças a esta particularidade anatômica, diverte-se assustando as pessoas que pernoitam no campo, à roda das fogueiras, retirando as brasas que joga para cima fazendo-as passar pelo buraco da mão”.[33]

                O Saci zombava da tentativa de impor a crueldade do sistema escravista a um “moleque” brejeiro e matreiro. Matreiro que, como ensina o lexicógrafo Cândido de Oliveira, significa astuto, manhoso, sagaz, pessoa esperta.

                Acresce-se ainda que a intenção explícita de Monteiro Lobato quando criou o Inquérito do Saci foi o de valorizar a cultura brasileira que estava perdendo espaço para a invasão cultural – na época – francesa. Todo o livro vai para esse rumo. É sintomático que logo na abertura ele descreva o caso de uma pessoa que estava indignada com os anões de jardins – gnomos europeus – e propunha que se trocasse por sacis. Afirmou mesmo que sendo “filho da imaginação collectiva o Sacy é uma resultante psychica do nosso povo” e que “é estudando taes manifestações [da psíquica coletiva] que poderemos conhecer o povo; que o conhecimento traz a comprehensão, e a comprehensão traz o amor”.[34]

                O Inquérito sobre o Saci é, portanto, um libelo pela cultura nacional, de construção coletiva. Não é uma obra de difusão do racismo ou coisa que o valha. Assim como, em princípio, o mito do Saci também não é.

 

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

04.01.2013.



[1] BRANDÃO, Adelino. Euclides e o Folclore. Jundiaí (SP): Literarte, 1985, p. 44.
[2] LOBATO, Monteiro. Sacy-Perêrê – Resultado de um Inquérito [edição fac-similar]. Rio de Janeiro: Gráfica JB S. A., 1998, p. 20.
[3] BRANDÃO, Op. Cit, 1985, p. 44.
[4] LOBATO, Op. Cit, 1998, p. 20.
[5] ROSSATO, José Carlos. Saci. São José dos Campos (SP): Fundação Cultural Cassiano Ricardo, s/d, p. 18.
[6] ROSSATO, Op. Cit, s/d, p. 15.
[7] BRANDÃO, Op. Cit, 1985, p. 43.
[8] Candomblé – O mundo dos orixás. Disponível em: http://ocandomble.wordpress.com/os-orixas/ossaim/ Acesso em 04 jan 2013.
[9] Idem acima.
[10] LOBATO, Monteiro. O Saci. São Paulo: Brasiliense, 1952, p. 185.
[11] FERNANDES, Waldemar Iglésias. 52 estórias populares (Sul de São Paulo e Sul de Minas). Piracicaba (SP): Editora Franciscana, 1978, p. 93.
[12] ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil – Histórias, Costumes e Lendas. São Paulo: Editora Três, 2000.
[13] OLIVEIRA, Pierre de. O Livro dos Gnomos. São Paulo: PEN, 1992, pp. 15 – 16.
[14] ROSSATO, Op. Cit, s/d, p. 25.
[15] BRANDÃO, Adelino. Presença do Saci. In Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo, 1971, p. 30.
[16] LOBATO, Op. Cit, 1998, p. 20.
[17] OLIVEIRA, Op. Cit, 1992, p. 15.
[18] ROSSATO, Op. Cit, s/d.
[19] Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/entretenimento/2012/08/mouzar-benedito-e-ohi-lancam-mitologia-brasilica-em-sao-paulo Acesso em 04 jan 2013.
[20] SASS, Roselis Von. Revelações inéditas da História do Brasil. São Paulo: Ordem do Graal na Terra, 1983, p. 65.
[21] SANTOS, Theobaldo Miranda. Lendas e Mitos do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987, p. 119.
[22] BRANDÃO, Op. Cit, 1971, p. 23.
[23] Idem, p. 31.
[24] LOBATO, Op. Cit, 1952, p. 185.
[25] BRANDÃO, Op. Cit, 1971, p. 31.
[26] ARAÚJO, Op. Cit, 2000.
[27] CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 90.
[28] LOPES NETO, João Simões. Lendas do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1983, p. 110.
[29] PORTELA, Nerize Quevedo. A velha da Gruta e outras histórias. São Paulo: Biblioteca24 horas, 2011, p. 176.
[30] Disponível em: http://www.gtclovismoura.pr.gov.br/arquivos/File/relatoriofinal2005a2010.pdf Acesso em 04 jan 2013.
[31] LOBATO, Op. Cit, 1998, p. 73.
[32] LOBATO, Op. Cit, 1952, p. 188.
[33] BRANDÃO, Op. Cit, 1971, p. 20.
[34] LOBATO, Op. Cit, 1998, pp. 20 – 21.