segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Um Conselho para a Cultura (IV)



                O Sistema Nacional de Cultura foi instituído pela Emenda Constitucional nº 71/2012, promulgada pelo Congresso Nacional e tem por objetivo principal indicar caminhos para uma “Gestão articulada e compartilhada entre Estado e Sociedade, seja integrando os três níveis de Governo para uma atuação pactuada, planejada e complementar, seja democratizando os processos decisórios intra e inter governos e, principalmente, garantindo a participação da sociedade de forma permanente e institucionalizada” (Sistema Nacional de Cultura – Guia para Orientação dos Municípios – Dezembro 2012).
                Muito adiante do seu tempo, o prefeito Leonardo Marchesoni Rogado já havia criado o Conselho Municipal de Cultura, em abril de 1997, prevendo a participação de representantes da sociedade civil na composição de seus quadros. Mas a simples existência do Conselho de Cultura, que foi reativado, após anos de inatividade, pelo prefeito Levi Rodrigues Vieira, não é suficiente para que Porto Feliz esteja atrelado ao Sistema Nacional de Cultura.
                Uma das vantagens de se participar do Sistema Nacional de Cultura é a garantia de repasses de verbas do Fundo Nacional de Cultura. Mas isso é apenas um detalhe dentro do alcance ideológico da Gestão Pública da Cultura. Além da visibilidade e da importância que a área merece, o Sistema Nacional de Cultura proporciona a continuidade de políticas destinadas ao setor, mesmo quando existe a troca de governos. Isso porque, como foi dito, além do Conselho de Cultura, a participação do município dentro do Sistema Nacional está condicionada a existência, no mínimo, de cinco componentes, quais sejam: Secretaria de Cultura (ou órgão equivalente), Conselho Municipal de Política Cultural, Conferência Municipal de Cultura, Plano Municipal de Cultura e Sistema Municipal de Financiamento da Cultura (com Fundo Municipal de Cultura). E se o município tiver apenas quatro desses cinco componentes? O próprio material produzido pelo Ministério da Cultura deixa claro que a participação do município requer a implantação, por meio de lei, de todos esses componentes.
                O Sistema Municipal de Cultura, segundo o referido documento, “deve criar as conexões entre os seus componentes”. Desse modo, “a Conferência Municipal de Cultura estabelece as macrodiretrizes da política cultural, que devem ser detalhadas pelo Plano Municipal de Cultura, elaborado pelo Órgão de Cultura (Secretaria ou Diretoria) e aprovado pelo Conselho Municipal de Política Cultural”. Desse modo, uma ação está articulada a outra e deve ser realizada por um componente específico a fim de garantir os princípios do Sistema Nacional de Cultura, dentre os quais o da democratização e participação da sociedade.
                A participação do município no Sistema Nacional de Cultura garante ainda as estratégias e planos em longo prazo para a Cultura, os quais, uma vez pactuados, terão de ter continuidade a despeito de quem quer que esteja no comando do governo. Assim, tem-se uma segura estabilidade da Cultura, protegendo-a das inconstâncias e instabilidades dos governos. Aliás, as verbas do Fundo Nacional de Cultura só virão para o município se este cumprir a sua parte no pacto. E isso deve estar explícito no seu Plano Municipal de Cultura. E o papel do Conselho dentro de todo esse processo é essencial e já está estabelecido nas diretrizes do Sistema Nacional.
                Talvez seja importante reivindicar que o Conselho seja deliberativo, como induz o Guia de Orientação dos Municípios, assegurando ainda a autonomia do grupo e a democratização das decisões. Ainda que costumeiramente a democracia das decisões de âmbito governamental ainda assuste alguns dirigentes, é necessário dizer que essa participação denota o compartilhamento das responsabilidades. Sociedade e Estado compartilharão juntos as responsabilidades da Gestão da Cultura. Isso significa que não apenas o Estado ou o Governo responderão pelas atitudes tomadas. Desse modo, parece-me uma grande vantagem para os dirigentes.
                Importante ressaltar que o governo federal, ao menos o Ministério da Cultura, aposta neste projeto do Sistema Nacional da Cultura de forma a disponibilizar amplamente, a quem quiser ter o acesso, materiais diversos, incluindo modelos de leis e de atas para criação dos componentes mínimos necessários para a participação. Somente não participa o município que não quiser.
                Está em nossas mãos o propósito de levarmos a Cultura de Porto Feliz ao patamar que merece. Aposto no Conselho de Cultura por conhecer vários de seus membros, conhecer a vontade, honestidade e competência desses mesmos. O caminho está aberto e a História está sendo escrita. Atribui-se a Freud a frase: “Só o conhecimento traz o poder”. Que os membros do Conselho de Cultura se apropriem, então, do conhecimento desse Sistema Nacional de Cultura e que, ao lado da Secretaria de Educação, Cultura e Esportes, exerça o poder de buscar a adesão de Porto Feliz a esse Sistema. Algo importante para se refletir.
               

Carlos Carvalho Cavalheiro
25.12.2013.















Um Conselho para a Cultura (III)


                Este artigo, publicado em partes na TRIBUNA, já debateu sobre a forma da gestão cultural pública e o papel do Conselho de Cultura na implantação desse modelo. Também foi debatida a necessidade do mapeamento das atividades culturais do município com vistas a criar um Plano de Gestão Cultural que possa se alinhar, posteriormente, com o Sistema Nacional de Cultura. No entanto, antes de evoluirmos para esse ponto, creio que seja importante falar sobre outro assunto: o orçamento destinado à Gestão Pública da Cultura.
                A princípio, o ideal seria que a Cultura tivesse orçamento próprio e para que isso pudesse ocorrer teria de ser criada uma pasta independente, ou seja, que existisse uma Secretaria de Cultura. Há no senso comum a ideia de que Cultura e Educação devem caminhar juntas por terem, entre si, uma interface. Bom, concordo com isso da mesma forma que penso que a Cultura tenha interface com a Saúde, com o Meio Ambiente, com o Desenvolvimento Econômico, com o Turismo, com Esportes, com ... Entretanto, são demandas diferentes e campos de atuação distintos, além de constituírem áreas de conhecimento distintas. Como já foi dito aqui, não se pode tratar a Cultura como um supérfluo ou uma “perfumaria” que necessite estar atrelada a outra Secretaria por não ter a “importância” das outras áreas de atuação do Poder Público.
                Esse debate suscita outro: a necessidade de se pensar a Cultura de forma sistêmica. Porto Feliz possui importantes e até invejáveis próprios culturais. São raras as cidades interioranas, por exemplo, que possuem um Arquivo Público. Ou mesmo a Casa da Cultura, especialmente se se pensar nas atividades que são desenvolvidas ali. O Museu Histórico e Pedagógico, embora esteja atualmente fechado por problemas estruturais do prédio, é outro próprio cultural de extrema significância, assim como a Biblioteca Municipal. Acrescente-se nesse rol a Estação das Artes e o Espaço Olair Coan. São pérolas, certamente. No entanto, se estiverem soltas, sem um fio condutor de uma política cultural sistêmica, nunca formarão um colar.
                Voltando à questão do orçamento, é importante que o Conselho de Cultura, na sua função de orientação e planejamento, convença a quem de direito da necessidade de orçamento específico para a área da Cultura. É uma luta árdua, pois como se disse à exaustão neste artigo, há a necessidade de mudar o entendimento historicamente construído de que a Cultura não é área de relevância.
                A inclusão de demandas da Cultura no orçamento do município, por outro lado, depende do Plano de Gestão da Cultura e, especificamente neste ponto, o Conselho pode também atuar. Existindo o plano fica muito mais fácil convencer da necessidade de verbas para a sua execução. Lembrando sempre: plano de Gestão não pode ser um rol de projetos de eventos a serem realizados.
                Entretanto, há outros caminhos que podem ser trilhados no sentido de apontar alternativas para a falta de recursos da Cultura. Um desses caminhos, já previsto pelo então prefeito Leonardo Marchesoni Rogado, é o Fundo Pró-Cultura que tem o “objetivo de vincular receitas públicas ao desenvolvimento de serviços culturais no município de Porto Feliz” (Lei 3752/99). Dentre as receitas que devem compor o Fundo Pró-Cultura estão as doações, legados, subvenções, auxílios e contribuições de qualquer natureza. Parece que não há problemas aqui em se mobilizar o Setor Privado, especialmente o comércio, a indústria e os prestadores de serviços, no sentido de obter a contribuição (mensal ou anual) voluntária para o referido Fundo. Não é a única fonte de recursos prevista legalmente. O inciso IV do artigo 6º da Lei que cria o Fundo Pró-Cultura explicita as dotações orçamentárias previstas em lei. Eis aqui a parte em que o Plano de Gestão pode convencer o Legislativo da necessidade de previsão orçamentária para as atividades ligadas à administração municipal da Cultura.
                Além do Fundo Pró-Cultura, outra alternativa para o exíguo orçamento seria a criação de uma Lei de Incentivo à Cultura que destinasse parte de receitas do Município para a execução de projetos culturais de munícipes com mais de 5 anos de residência em Porto Feliz. Um exemplo: segundo o Portal de Transparência da Prefeitura Municipal de Porto Feliz foi arrecadado até o dia 20 de dezembro deste ano, em relação ao Imposto sobre serviço de qualquer natureza (ISSQN) o montante de R$ 11.953.050,05. Se houvesse uma Lei de Incentivo à Cultura que destinasse 2% desse montante para projetos culturais, teríamos algo em torno de R$ 239.000,00 que poderiam ser usados em peças teatrais, em publicação de livros, em produção de vídeo, em exposições de arte, etc. Algo importante: a Lei deve prever uma contrapartida para os projetos aprovados, qual seja a obrigatoriedade de uma exibição gratuita (ou distribuição de certa porcentagem do produto, no caso de livros, CDs, DVDs ...) e, também, a realização de uma oficina dentro do tema do projeto. Por exemplo: no caso de uma peça teatral ser aprovada, o grupo se comprometeria a realizar uma sessão (apenas uma) gratuita e uma oficina sobre dramaturgia. Se fosse a publicação de livro, o autor se comprometeria a doar uma parte (10%?) dos livros publicados para próprios culturais, escolas e pesquisadores; além de realizar uma oficina de literatura.
                Dessa forma, além de ampliar a produção cultural da cidade, dando oportunidade para quem quer produzir, seria atingidos também os objetivos de formação, informação e entretenimento, tão importantes e necessários para o desenvolvimento da Cultura.

(Continua)

25.12.2013
Carlos Carvalho Cavalheiro.


Um Conselho para a Cultura (II)


                Dando prosseguimento ao artigo publicado no último número do jornal Tribuna das Monções inicio discorrendo sobre a necessidade do mapeamento cultural da cidade. A questão é bastante óbvia: como desenvolver um Plano de Gestão Cultural se não se conhece a realidade da produção da cidade? O mapeamento é desnecessário quando não se tem a pretensão de produzir um Plano de Gestão, uma Política Pública e quando enxerga o Poder Público como o promotor de eventos artísticos que “leva cultura” a quem não a possui (como se isso fosse possível).
                Para quem se propõe a tratar a Cultura com a seriedade que ela exige, o mapeamento das atividades culturais é essencial e imprescindível. Não importa se a cultura que se desenvolve em determinada localidade do município é de caráter folclórico, popular, erudito ou mesmo de massa. O que importa é conhecer o que se produz e onde se produz. Exemplos factuais: Em São Paulo ocorre anualmente um evento relacionado ao folclore paulista chamado “Revelando São Paulo”. Nesse evento, grupos folclóricos de diferentes regiões de São Paulo ganham visibilidade, autoestima e oportunidade de trocas de experiências e vivências. Esse trabalho, cujo resultado pode ser visto no documentário “São Paulo, corpo e alma”, produzido pela Associação Cachuera!, vem sendo realizado há 16 anos. Em Porto Feliz há dançadores de São Gonçalo, uma das danças mais tradicionais do solo paulista. Nunca foram ao “Revelando São Paulo”! É provável, pelo que tenho verificado, que muitos nem sabem da existência desses devotos de São Gonçalo do Amarante. No entanto, se existisse um mapa cultural da cidade...
                Outro evento, que ocorre bienalmente, mas de importância para a cultura dos municípios paulistas é o “Mapa Cultural Paulista”. Trata-se de um programa promovido pela Secretaria de Estado da Cultura e que realiza, como num festival, etapas de seleção de expressões artísticas (Teatro, Dança, Artes Visuais, Canto Coral, Música Instrumental, Literatura e Vídeo), premiando os selecionados na Fase Estadual e fazendo circular os seus produtos artísticos. Segundo o site do Mapa Cultural Paulista, trata-se de “uma das mais importantes políticas culturais do Estado de São Paulo do ponto de vista formativo, informativo e de circulação de artistas do interior do Estado. Nenhum estado brasileiro possui um programa parecido, podendo tornar-se referência nacional. Criado em 1995, tem o objetivo de fomentar as produções culturais do interior, revelando valores em segmentos que não teriam acesso aos meios de comunicação e com pouca visibilidade no meio cultural”. A simples divulgação da abertura do processo seletivo tem se mostrado ineficaz para que haja um número significativo de inscrições nesse Programa. E não estou falando especificamente de Porto Feliz. Só para citar um exemplo, Sorocaba, que possui cerca de 600 mil habitantes, teve pouco mais de uma dezena de inscritos e apenas 8 (oito) selecionados na Fase Municipal! O mapeamento das atividades culturais, aliado à um Plano de Gestão da Cultura, poderia direcionar o convite direto do Poder Público para os produtores artísticos. Quantos músicos há na cidade? Quantos artistas plásticos, cineastas, fotógrafos, cantores, literatos?
                Tenho por certo que o mapeamento das atividades culturais é a base para o desenvolvimento de Política e Plano de Gestão Cultural. Lembrando que Cultura não se restringe a atividades artísticas. Nesse sentido, a tradicional Festa de São Benedito, que ocorre atualmente em janeiro, é um evento religioso e cultural, mas não artístico. Mapeado esse evento, pode-se sugerir a sua inclusão, por exemplo, em calendário de Turismo religioso, como o Estado, vez ou outra, tem imprimido e divulgado.
                Sem ferir a sua finalidade, mas ao contrário, reforçando mesmo a sua função de cooperar com a administração municipal, especialmente no tocante a orientação e planejamento, o Conselho de Cultura pode propor e ajudar a criar o Mapeamento das Atividades Culturais do município de Porto Feliz. Conhecendo tais atividades, pode-se propor, num segundo momento, ações e planejamentos para o desenvolvimento da produção cultural porto-felicense.

(Continua)

Carlos Carvalho Cavalheiro – 16.12.2013

               
               


Um Conselho para a Cultura (I)


                O jornal Tribuna das Monções do dia 30 de novembro de 2013 publicou nota dando conta da reativação – após um período de seis anos de inatividade – do Conselho Municipal de Cultura. É um avanço porquanto a Cultura, infelizmente, comumente é tratada como “perfumaria”, como supérfluo, tanto na percepção da opinião pública de forma geral como pela Gestão Pública que nem sempre desenvolve políticas adequadas para essa área.
                Um erro bastante recorrente do Poder Público, quando este aceita que a Cultura tenha alguma relevância para a sociedade, é acreditar que o seu papel seja o da promoção de eventos artísticos. Basta perguntar a um gestor público dessa área qual é a política cultural adotada é logo se recebe como resposta um rosário de eventos promovidos: apresentação de dança, apresentação de música, exposição de fotografias etc etc. No entanto, isso não é Política Cultural.
                Cultura, numa perspectiva antropológica, pode ser definida, se quisermos um conceito bastante amplo, como o conjunto das criações humanas e que tem por objetivo atender aos anseios dos seres humanos, sejam estes materiais ou imateriais. Portanto, cultura é indissociável do ser humano por ser uma criação deste. Dentro do leque de ações que compõe o campo da cultura, a arte é um dos seus aspectos. Entretanto, compõe a Cultura as crenças, os costumes, as religiosidades, a memória, a História, os valores, a gastronomia, a língua e o linguajar, as lendas, enfim, o arcabouço das características e da criação de um povo.
                Portanto, a reativação do Conselho Municipal de Cultura de Porto Feliz é uma notícia alvissareira. Por quê? Retomemos o histórico do Conselho. Criado em 10 de abril de 1997, por meio da Lei nº 3528, o Conselho Municipal de Cultura tem por finalidade legalmente definida ser um “órgão de cooperação governamental, que tem por finalidade auxiliar a Administração Municipal na orientação, planejamento, fiscalização e julgamento das matérias de sua competência, ligadas à cultura e ao patrimônio ambiental urbano”. Como se pode verificar, a área de atuação do Conselho é deveras abrangente, embora muito importante no sentido de apontar caminhos para a realização de uma Gestão Pública Cultural.
                O Conselho pode, por exemplo, iniciar a discussão em torno da melhor forma de se trabalhar a cultura do ponto de vista do Poder Público: se através de administração da cultura ou gestão cultural.
A administração da cultura, que é a forma mais comum e disseminada do Poder Público lidar com essa temática, ou fundamentar sua política cultural, é a visão do Estado controlando, produzindo ou patrocinando cultura. Esse modelo, anacrônico e pouco funcional, em que pese a boa vontade de alguns dirigentes culturais, é excludente e elitista. À medida que se tende a patrocinar somente àqueles que se alinham com a política cultural dos representantes do Poder Público, atitude essa esperada da natureza humana, exclui-se do processo de produção cultural uma gama de outros produtores tão bons ou melhores do que os beneficiados. Ademais, o administrador da cultura procura dissimular as falhas de sua política cultural (afinal, omissão também pode ser considerado um ato político) produzindo cultura através da elaboração dos mágicos "calendários" culturais em que se privilegia a promoção de eventos desconexos e descontextualizados, geralmente, e sem atender a uma real necessidade da comunidade. Daí surgirem conceitos equivocados como "levar cultura" ou "ensinar cultura" aos locais descentralizados.
Na abertura desta discussão estabeleceu-se que a cultura é indissociável do ser humano. Assim, de uma forma ou de outra, somos todos capazes de produzir e apreciar cultura. Então, não é "levando cultura" que se desenvolve cultura. É, antes, incentivando e criando condições para que ela se desenvolva. O homem produz cultura espontaneamente, se não expõe seu produto é porque lhe faltam condições, até mesmo de conscientização, para reconhecer como produto cultural àquilo que tão naturalmente ele cria.
Por outro lado, o modelo de gestão cultural propõe a criação de condições (estruturais, materiais, financeiras...) para a produção cultural, a todos, com liberdade de crítica e de criação aos produtores culturais e primando pela não exclusão, visando o respeito, a cidadania e a liberdade. Ao Poder Público, como gestor cultural, cabe criar essas condições e direcionar a política cultural para esses fins.
O gestor não é apenas o administrador dos recursos financeiros destinados à cultura. Ele se utiliza desse expediente para criar o plano de gestão da cultura. Por intermédio desse plano estabelecem-se as metas e prioridades para a área cultural, levando em consideração as necessidades da comunidade, seus aspectos históricos e geográficos, sua formação étnica, sua realidade socioeconômica etc... A seguir, realiza o levantamento das atividades culturais e dos produtores de cultura da comunidade e seus problemas e seus desejos. A partir desse mapeamento, procura criar as condições para a produção cultural inclusiva.

(Continua)
Carlos Carvalho Cavalheiro – 16.12.2013.

                

Soronordestinos ou o destino de cada um


                                                                    Eu te reconheço em cada transeunte,
                                                                    Na displicência dos ébrios marchando na Praça,
                                                                   nas marquises onde dormem crianças,
                                                                  na hipotética eficácia dos discursos.
                                                                 Vejo tua feição de trezentos e cinqüenta anos
                                                                disfarçando as rugas com prédios modernos,
                                                                vidros reluzentes nas janelas e elevadores panorâmicos.
                                                                As pegadas dos índios tupiniquins, os primeiros pés
                                                                que massagearam o teu virgem solo,
                                                                tu escondeste sob a manta asfáltica.
                                                               Apagaste o Peabiru da história.
                                                              A casa de Baltasar Fernandes, teu pai,
                                                              demoliste sem comiseração e assim privaste
                                                             nossos olhos de tão raro monumento.
                                                             Deixaste apenas a Igreja de Santana, o Mosteiro
                                                             de São Bento, o casarão do capitão Chico,
                                                             uma ou outra construção e as antigas fábricas.
                                                             Seus prédios são insuficientes para te revelar.
                                                             São as pessoas que cumprem hoje esse papel:
                                                             os espanhóis, os negros, os paranaenses,
                                                            os italianos, os japoneses, os mineiros, os gaúchos,
                                                            os coreanos, os árabes, os chineses, os ingleses,
                                                            os índios, os estadunidenses, os alemães, os cariocas,
                                                             e todos os nordestinos em geral.
                                                             O Peabiru reinventado. A sina repetida.
                                                             Foste, és e serás sempre caminho de passagem
                                                             para muitos e de estada para aqueles que reconhecem
                                                            o teu brilho dissimulado na poeira do caos.

                                                                      Carlos Carvalho Cavalheiro – 24.04.2004.    


                                     Quando o fidalgo português Dom Francisco de Souza, governador geral do Brasil, recebeu a notícia de que se achara no morro do Araçoiaba sinais de prata, entrou em polvorosa, reunindo imediatamente as embarcações necessárias e sua gente: soldados da guarnição baiana, escravos índios e trabalhadores (provavelmente conhecedores de mineração). Em agosto de 1599, aproximadamente, estava o governador e seu séqüito em Araçoiaba. Esse foi o primeiro registro do deslocamento de pessoas do nordeste (Bahia, especificamente) para a região de Sorocaba (que ainda nem nascera).
                                     Séculos mais tarde, muitos dos escravos negros que trabalharam em Sorocaba eram nascidos no nordeste brasileiro ou de lá vendidos depois que o ciclo da cana de açúcar entrou em decadência. Esses são fatos históricos que afirmam a presença nordestina na formação da cidade de Sorocaba.
                                      Outro aspecto que inspirou a afluência de pessoas de outras regiões para Sorocaba foi sua localização geográfica. Estrategicamente localizada entre o sul do país e os caminhos que levavam a sertão adentro, como o Mato Grosso, Minas Gerais e mesmo para a capital paulista, a cidade sempre se deparou com o fluxo de pessoas das mais diversas etnias, costumes e crenças.
                                      Sorocaba sempre foi caminho de passagem dos índios que utilizavam a estrada do Peabiru, depois dos bandeirantes que aproveitavam esses caminhos abertos, posteriormente para os tropeiros no comércio de muares e hoje como ligação do Estado de São Paulo com o sul do país. Não é sem propósito que os pés cansados de muitos migrantes encontram nessa cidade o alento.
                                      Ao homem pode faltar o coração, os olhos, as mãos, o fígado. Pode faltar-lhe tudo. Só não pode faltar o seu pé. É ele que faz do homem o ser semovente em busca da terra sem males.
                                      Com seus pés Abraão obedeceu ao seu Deus e abandonou a progressista cidade caldéia de Ur para ser peregrino em terra estrangeira. O que buscava? Talvez, a fé. E os hebreus nos tempos de José rumaram para o Egito fugindo da fome. Anos depois, Moisés liderou o êxodo desse mesmo povo que se tornara escravo dos egípcios. Buscavam a liberdade e a terra prometida. E os apóstolos de Cristo, milhares de anos após, semearam a fé por todo o mundo conhecido. Seus pés conheceram o pó do chão de pelo menos (se aqui excluirmos a lendária pregação de Tomé aos silvícolas da América) três continentes. E os bárbaros, vindos do leste, assolaram o império romano. E os europeus medievais peregrinaram por terras muçulmanas, regando o solo com o sangue de duas fés.
                                        O homem move-se sempre que sente necessidade. Fugindo da seca, do desemprego, da miséria, dos desmandos, da usurpação das terras, da falta de competição do trabalho humano em relação às novas tecnologias, os homens partem de várias localidades em busca de melhores condições de vida.
                                        Era isso que buscavam os espanhóis e os italianos quando vieram para a progressista, moderna e industrializada cidade de Sorocaba, lá pelos idos do século XIX e início do XX.
                                        Na década de 1940 o industrial pernambucano Severino Pereira da Silva forma a Companhia Nacional de Estamparia (Cianê), adquirindo as fábricas Santa Rosália, Santo Antônio e São Paulo. Como bom padrinho, traz de Pernambuco muito dos trabalhadores dessas fábricas. E emprega outros nordestinos: cearenses, paraibanos...
                                          Outros nordestinos vêem para Sorocaba com a abertura de filiais de indústrias de São Paulo, nas décadas de 1960 e 70. Também, outra leva, foge da saturação dos empregos disponíveis na capital paulista. Outros, desistem do canto da sereia e nem chegam a conhecer São Paulo: param em Sorocaba. Há ainda os que para cá vieram como missionários religiosos, especialmente de igrejas evangélicas.
                                            A presença nordestina em Sorocaba é inegável. Ela está nas empresas de viação da rodoviária (trazendo e levando nordestinos), nos barganheiros das imediações do Mercado Municipal, no sotaque dos louvores de muitas igrejas, nas casas de produtos especializados, nos quadros dos sindicatos de trabalhadores das indústrias, em músicos, nas feições...
                                           São cerca de 100 mil pessoas culturalmente nordestinas que vivem em Sorocaba. Por culturalmente nordestino entendo a pessoa que, se eventualmente natural de local diverso do nordeste, traz consigo por influência direta de familiares a cultura nordestina. São os filhos e netos de nordestinos que possuem os mesmos gostos, concepções e traços físicos e culturais.
                                           Essa cifra corresponde a um quinto da população total. É por esse motivo que nos mais diversos lugares, cada vez mais, se vê a presença do nordestino. Atualmente, alguns de nossos políticos são nordestinos, como o vereador Antônio Arnaud Pereira (o Arnô). Artistas, como os músicos Cassiano Moraes e o Menino Josué e o repentista Manoel Balbino. Militares como o tenente-coronel do Exército Brasileiro Domingos de Abreu, da 14ª Circunscrição do Serviço Militar. Fotógrafos como José Gonçalves Filho (o Foguinho) e o Epitácio Pessoa (o Pita). Capoeiristas como o Mestre Pedro Feitosa, o Mestre Eduardo Falcon, o Mestre Jaime e o professor Segundo (conhecido também como Axé, ele ainda é presidente de uma associação beneficente, o projeto “Sou Axé”, que cuida de crianças e adolescentes). Pesquisadoras como Adilene Ferreira que produziu o CD e o documentário “Cantos da Terra”. Até no cururu, desafio cantado tipicamente paulista, encontramos nordestinos como Cosme da Silva (o Cosminho), Nelson Pedro Vieira (o Nelsinho do Pandeiro) e Edival Rodrigues dos Santos (o Santo, baixista). Na Folia de Reis está o baiano Juarez Ribeiro Dutra, tocando caixa. E tantos outros nordestinos que contribuíram e contribuem para a cultura e o progresso de Sorocaba.
                                             Como negar a participação de Valdecy Alves e seu irmão Flávio Alves no desenvolvimento cultural de Sorocaba? Cearenses, residiram aqui por alguns anos, fundando jornais culturais como o Pedaços e o Luz do Túnel, produzindo vídeos, editando livros, publicando os seus próprios trabalhos, criando grupo teatral, realizando varal de poesias na Praça Coronel Fernando Prestes...
                                                E o que dizer de Alcides Nicéas? Pernambucano de Escada, foi um dos mais ardorosos sócios do Centro de Folclore de Sorocaba, sendo seu presidente em 1977. Foi ainda um dos fundadores da Academia Sorocabana de Letras e diretor do Gabinete de Leitura Sorocabano. O Museu do Folclore, criação do Centro de Folclore de Sorocaba, recebe seu nome. Infelizmente, encontra-se desativado. Alcides publicou ainda inúmeros artigos na imprensa local e diversos livros como “Verbetes para um dicionário do carnaval Brasileiro”, “O dinheiro na linguagem popular”, “Lampião, médico e parteiro”, “Aboio, um ritual agreste”, “Feijão tropeiro” entre outros.
                                                São esses nordestinos que escolheram Sorocaba e que, reciprocamente, essa cidade os acolheu. São os soronordestinos, encontrando aqui o seu melhor destino.
                                              

Carlos Carvalho Cavalheiro

24.04.2004