Andrea Alvesandrea.alves@jcruzeiro.com.br
Um dia ele sonhou ser escritor e, por ser apaixonado por cinema, chegou a falar que queria fazer filme em Hollywood. Mas o baiano acabou sendo mesmo um artista considerado o "Pai do Rock Brasileiro". O autêntico maluco beleza Raul Seixas - que "morreu de pé, sendo aplaudido por uma multidão de fãs", romantiza o músico Marcelo Nova, acompanhante de Raul na última turnê que fez pelo País - mantém-se vivo e, sim, chegou às telas do cinema. O documentário "Raul - O Início, O Fim e O Meio" estreia hoje em Sorocaba - até que enfim - e conta a trajetória do cantor e compositor por meio de depoimentos de ex-esposas, filhas, amigos, artistas e fãs de Raul. O filme será exibido diariamente, às 19h, no Cinespaço Villàggio Sorocaba, no Shopping Villággio.
Dirigido por Walter Carvalho e Leonardo Gudel, o filme começou a ser produzido em 2009, vinte anos após sua morte e apresenta Raul Seixas por meio de cenas, trechos de entrevistas e shows. Os depoimentos ficam por conta de quem conviveu com Raulzito e por personalidades que acompanhavam sua obra, seus ideias e ideais. Nelson Motta, Tom Zé, Caetano Veloso, entre outros, falam de passagens e das caraterísticas do homem que "respirava e provocava ao mesmo tempo" e que ainda "vomitava rock", como disse Pedro Bial . O inseparável amigo da juventude, dos tempos da idealização da sociedade alternativa, não podia ficar de fora: Paulo Coelho também revive e conta o passado ao falar mais sobre o cantor considerado polêmico pelo resto das pessoas que não compreendia e entendia alguém que pregava "faça o que tu queres, pois é tudo da lei".
A estreia do filme reforça o fato de que Raul arrastou e ainda arrasta uma legião de fãs que não só gostam de seu trabalho, mas se aprofundam em estudá-lo, tamanha sua riqueza de detalhes. O professor Carlos Carvalho Cavalheiro, ao se sentir órfão com a morte de Raul Seixas, chegou a fundar, com o amigo José Mário Ghiraldi, o fã-clube "Mosca na Sopa", que além de cultuar o roqueiro, fazia estudos sobre os diversos temas abordados em suas músicas. Carlos recorda que "naquela época, início dos anos 90, pululavam fãs-clubes de Raul Seixas e Marcelo Nova por todo o Brasil. Esse diferencial do nosso, que não era promover tietagem, mas compreender a obra do Raul. Durou um ano ou pouco mais".
Cavalheiro, que ainda não viu o filme, mas aguarda ansiosamente por esse momento, tem propriedade para dizer que fazer um documentário sobre Raul é entrar num terreno de complexidades visto a personalidade difícil de se decifrar. "Como ele mesmo dizia, uma verdadeira metamorfose ambulante. Não admitia rótulos criados, ironizava todos os rótulos. Basta ouvir o disco "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: Sessão das Dez", em que trata com irreverência até o movimento hippie, muito presente na época. Como entender uma mente que misturava assuntos tão distintos e complexos como filosofia védica com magia de Crowley ou mitologia egípcia? Raul tinha uma erudição sobre diversos assuntos."
O próprio fã e pesquisador de Raul não lhe põe, assim como preferia o artista, o rótulo de pioneiro do rock no Brasil e explica o motivo. "Não vou por essa linha porque não acredito muito no termo pioneiro, no sentido de primeiro e único, em nada. Sempre acredito que tudo o que ocorre é resultado de uma soma de esforços e de inspirações. Mas Raul trouxe algo novo. Ele criou o rock brasileiro, no sentido de não produzir cópia do que se produzia nos Estados Unidos, mas misturar ritmos diversos, especialmente brasileiros, ao rock and roll. Ele conseguiu enxergar que havia uma relação sutil entre o baião e o rock, por exemplo."
Do tempo do 'Toca, Raul'
Num texto publicado em seu blog, o "Spartacus em prol da liberdade" (http://spartacusemproldaliberdade.blogspot.com.br/), por ocasião do lançamento do documentário, em março desse ano, Cavalheiro fala de seu privilégio de ter vivido o tempo de Raul e usa duas expressões simples que contextualizam o antes e depois de Seixas. Como diz o historiador, o tempo "Toca, Raul" e "Toca Raul". Cavalheiro conta que em 1989, o músico Marcelo Nova (que foi da banda "Camisa de Vênus") percebeu a necessidade de apoiar Raul e com ele gravou um disco e fez uma série de shows pelo Brasil. "Imagina a emoção ao saber que o show ocorreria também em Sorocaba. Eu tinha meus 17 anos e não vacilei nem um minuto". O show não estava lotado, rememora, mas todos que se encontravam lá estavam irmanados num só objetivo: ver Raul Seixas cantar. "O show começou com atraso. Marcelo Nova e a Envergadura Moral (sua banda) subiram ao palco. Não cantou mais que duas músicas e o público começou a berrar em uníssono: "Queremos o Raul!". Não teve jeito, ele foi chamado e o clube veio abaixo."
Depois de vivenciar a experiência que ele considera inigualável, Carlos praticamente se recusa a ver os covers do Raul. "Alguns anos depois do show, um amigo me convidou para ver Roberto Seixas. Não dava... para quem viu de perto Raul Seixas cantar, não há nada que possa substituir. Com todo o respeito ao trabalho sério do Roberto Seixas. Mas ele é para a geração "Toca Raul". Eu tive o prazer de ser da geração "Toca, Raul"".
Para o professor de história, Raul tinha o talento de misturar as coisas, de explicar o mais complexo tratado filosófico em palavras e termos simples, em buscar relações entre o real e o mitológico mundo imaginário. "Dom Quixote está ao lado de John Lennon e San Martin ou de Violeta Parra em citações feitas nas músicas de Raul. Era um artista que nos obrigava a pensar, a refletir, a buscar informações para melhor compreendê-lo. E uma coisa sensacional era que cada um de nós que encontrássemos uma informação - por exemplo, o que significava "Gitá" - passávamos a informação para outro. Essa troca era espetacular. Dificilmente haverá outro artista como ele. Agora, a obra que Raul Seixas deixou está aí e aumenta o número de pessoas que se interessam por ela. Prova disso é o próprio filme. Acontece que hoje somos obrigados a conviver com superexposição de letras que falam de égua pocotó a "ai, se te pego". Não dá para comparar, não é mesmo?".
Das repetências na escola ao posto de um dos maiores artistas da música brasileira
Raul Seixas nasceu em 28 de junho de 1945, em Salvador. Suas inúmeras repetências na escola tinham um motivo, segundo os professores da época: em vez de assistir aulas, ele ouvia rock and roll. Raul fundou, com um amigo, o Elvis Rock Club, o que já demonstrava parte de suas influências que ainda traziam diferentes artistas como Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Beatles, Led Zeppelin e muitas bandas e cantores que fizeram história. Declarava que não gostava da escola e adorava ler - tanta imaginação saia de sua cabeça que quando menino fez esboços de histórias e desenhos. O sonho de ser escritor o acompanhou por muitos anos. Chegou a passar no vestibular para os cursos de Direito, Filosofia e Psicologia, mas optou pela música.
Foi em 1973 que o álbum "Krig-ha, Bandolo!" chamou atenção da crítica. Raul lançou 21 discos. As 50 apresentações que fez pelo Brasil ao lado de Marcelo Nova resultaram naquele que seria o último disco lançado em vida, o álbum "A Panela do Diabo", lançado no dia 22 de agosto de 1989. Raul Seixas foi encontrado morto em seu quarto, vítima de uma parada cardíaca, depois de muito sofrer com o alcoolismo, no dia 21 de agosto, uma dia antes do lançamento do LP.
Em 2007, a revista Rolling Stone divulgou uma lista dos Cem Maiores Discos da Música Brasileira. O álbum "Krig-ha, Bandolo!", de 1973 aparece na 12ª posição e "Novo Aeon" ficou em 53º lugar. No ano seguinte, a publicação trouxe uma lista dos Cem Maiores Artistas da Música Brasileira e Raul Seixas aparece na 19ª posição.