terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Desejo de ser argentino

Na segunda-feira, dia 18 de dezembro, as ruas da Argentina foram tomadas pela população que em massa protestava contra a proposta de Reforma da Previdência apresentada pelo governo do presidente Maurício Macri. Aos gritos de “aqui não é o Brasil”, os manifestantes tiveram confrontos violentos com a polícia que procurava reprimir os protestos.
Diferentemente no Brasil, a população estava mais preocupada com as compras de Natal e, como Deus é brasileiro e os nossos políticos sobrevivem das eleições, o clima desfavorável à votação da Reforma fez com que essa fosse adiada para Fevereiro. Isso mesmo, na época de Carnaval. Afinal, a nossa fé em Momo é igualada à crença que temos no sobrenatural e na vã esperança de que um ser qualquer – anjo, extraterreste, Super-Homem ou alguém com patente militar – possa nos salvar. No mais, continuamos na passividade e na inércia enquanto nos roubam as poucas conquistas históricas que angariamos.
Pela primeira vez superamos o nosso preconceito e com vergonha na cara sentimos o desejo de sermos argentinos, de sairmos à rua para algo que de fato valha à pena e não por um engodo que nos engula ao final.
A página oficial do Governo Federal Brasileiro sobre a Reforma da Previdência está repleta de informações mal explicadas. Como uma espécie de mantra – no sentido mesmo de, por meio da repetição, nos levar a “outro estado” de consciência (talvez, alterado) – em diversos links do portal aparece a sentença: “A reforma da Previdência não tira direitos de quem mais precisa, pelo contrário, ela garante um sistema mais justo para todos os brasileiros. As regras atuais, com o pagamento de altas aposentadorias para políticos e para o alto funcionalismo público, criam uma classe de privilegiados que se aposentam muito cedo e com valores que deixam o sistema insustentável. Para acabar com essa desigualdade, a reforma da Previdência vai promover um sistema mais equilibrado e sustentável”. (http://www.brasil.gov.br/reformadaprevidencia/textos/reforma-da-previdencia-entenda-o-deficit).
De acordo com esse portal, ”Há muita gente se aposentando mais cedo no Brasil, com idade e condições de trabalhar. Algumas, em especial nas altas classes do serviço público, aposentam-se ganhando mais de R$ 30 mil. Se continuarmos assim, faltará dinheiro para pagar os benefícios de quem trabalha atualmente e quer receber aposentadoria no futuro” (http://www.brasil.gov.br/reformadaprevidencia/textos/reforma-da-previdencia-entenda-o-deficit).
Quando pensamos em salários de R$ 30 mil nos vem à mente os ocupantes de cargos políticos, altos funcionários do Poder Judiciário e Militares de alta patente. O jornal “O Globo” em novembro de 2016 noticiou que os militares respondiam por quase 50% do rombo da Previdência da União. De acordo com o noticiário, “Em 2015, déficit da categoria era de R$ 32,5 bilhões, ou 45% do rombo da União” (https://oglobo.globo.com/economia/militares-respondem-por-quase-metade-do-deficit-da-previdencia-20470974). Porém, ao contrário do que se deveria esperar, diante de tal situação, ainda em novembro de 2016, o ministro da Defesa, Raul Jungmann disse que os militares devem ficar fora do projeto de Reforma da Previdência, pois, afinal, “Não é justo tratar igualmente quem é desigual” (https://www.gazetaonline.com.br/noticias/politica/2016/11/militares-ficarao-fora-de-projeto-da-reforma-da-previdencia-diz-ministro-1013998261.html).
Aí começa a aparecer o engodo. O mote da Reforma, segundo o Governo Federal, não é acabar com os privilégios para que se promova a igualdade? Porém, o próprio Ministro do governo admite que “há os mais iguais do que os outros”? Como é que fica?
A coisa é simples e somente um otário não percebe (que me perdoem a expressão chula, mas o momento a exige). Se o problema do rombo da Previdência é causado pelas altas aposentadorias que chegam a R$ 30 mil, porque não limitar tais aposentadorias? Não estaria resolvido o problema? No entanto, o governo federal, além de não tocar nos privilégios dos mais ricos, ainda apresenta para os mais pobres as novas regras de aposentadoria, com o seguinte texto: “Pelo novo texto proposto para a reforma da Previdência, fica estabelecida uma nova idade mínima de aposentadoria: 65 anos para os homens e 62 anos para as mulheres”. (http://www.brasil.gov.br/reformadaprevidencia/textos/reforma-da-previdencia-idade-minima).
Se o problema são as altas aposentadorias – que, de fato, representam uma fatia grande do “rombo” (se é que ele existe), por que se faz necessário mexer com os direitos e a aposentadoria daqueles que ganham pouco? Diz o portal do governo federal na internet que “A reforma da Previdência protege quem mais precisa e garante uma aposentadoria mais justa para todos os brasileiros. As regras atuais, com o pagamento de altas aposentadorias para políticos e para o alto funcionalismo público, criam uma classe de privilegiados que se aposentam cedo e com valores que deixam as contas públicas no vermelho. Para acabar com essa desigualdade, a reforma da Previdência vai promover um sistema mais equilibrado e sustentável” (http://www.brasil.gov.br/reformadaprevidencia/textos/cinco-fatos-sobre-a-reforma-da-previdencia).
No entanto, fica estampado na cara que a reforma atingirá apenas e tão somente o trabalhador pobre, aquele que não aproveita dos salgados e doces, dos comes e bebes, mas está acostumado a pagar a conta da festa dos mais privilegiados. Nesse momento, apossa-se o desejo de sermos como os argentinos: aguerridos defensores de seus direitos historicamente conquistados.

Carlos Carvalho Cavalheiro – 19.12.2017

130 anos de Sherlock Holmes


“Nenhum outro ano tornar-se-ia tão importante em minha vida como aquele 1887 em que encontrei pela primeira vez aquele que se tornaria o meu melhor amigo e com quem compartilharia das maiores aventuras contra os criminosos de então. Naquele momento, adquirimos o direito à vida eterna nas páginas literárias…”
Poderia ser mais ou menos assim a explicação por escrito do Dr. John H. Watson acerca do surgimento de um dos maiores personagens da ficção: o detetive Sherlock Holmes. De tão conhecida a sua figura, acabou por tornar-se o estereótipo do detetive particular (ou de consulta, como ele mesmo diria), com seu cachimbo, casaco, lupa e boné.
Há 130 anos, com a publicação de Um estudo em vermelho o escocês Sir Arthur Conan Doyle deu início a uma série literária composta de 56 contos e 4 novelas com as aventuras de Sherlock Holmes e Dr. John Watson. Trata-se de uma ficção tão bem elaborada que o próprio Holmes ganhou a sua “biografia”: Nasceu em 6 de janeiro de 1854. Estudou na Universidade de Cambridge. Foi sócio do Clube Diógenes, tocava violino com maestria e tinha seu consultório/residência na Baker Street, nº 221-B. Tantos detalhes criaram embaraços para Doyle que chegou a ser assediado por pessoas que imploravam para que ele apresentasse pessoalmente o grande detetive. Não criam tais pessoas que Holmes fosse apenas uma criação literária. De outra feita, Conan Doyle foi processado por leitores inconformados com a morte de Sherlock Holmes – e a consequente interrupção da série de livros – na aventura O problema final, na qual é narrada a luta corporal entre Holmes e o professor Moriarty nas cataratas de Reichenbach. Conan Doyle pretendia ‘assassinar’ Holmes para poder se dedicar ao que ele chamava de “literatura séria”.
No entanto, foram exatamente os seus livros ‘pouco dignos’ (usando a própria expressão de Doyle), com aventuras do detetive Holmes, que lhe renderam fama e estudos de leitores e associações como a Conan Doyle Literaty Society e a Sherlock Holmes Brasil.
Artigos foram escritos e publicados analisando aspectos diversos da literatura sherlockiana. Discutem-se datas, comparam-se fatos, focos narrativos (que em geral são na 3ª pessoas, eis que ‘escritos’ por Watson…) entre outros. E suas histórias tão envolventes geraram em todos os tempos legiões de pesquisadores sherlockianos.
Ainda hoje o cinema se aproveita da figura do eterno detetive britânico. Em 2015 foi lançado o filme “Mr. Sherlock Holmes”, representado pelo ator Ian McKellen. A história se passa em 1947, e Sherlock Holmes, então com 93 anos, luta contra seus problemas de saúde decorrentes da senilidade. Em 2009 e 2012 o ator Roberto Downey Junior interpretou o detetive em “Sherlock Holmes” e “Sherlock Holmes 2 – O jogo das sombras”. Há duas séries de TV que o retratam: “Sherlock” e “Elementary”. Há algumas décadas, precisamente no final da década de 1980, surgiu a série de TV, quando Sherlock foi interpretado por Jeremy Brett. Talvez o mais famoso de todos os atores que interpretaram Holmes tenha sido Basil Rathbone que participou de mais de 25 filmes e séries de TV entre as décadas de 1940 e 1950.
É possível que Conan Doyle tenha criado Sherlock Holmes como forma de simbolizar sua própria vida naquele momento. Não é segredo que tenha criado Holmes em momento de certa frustração profissional, eis que não havia muitos pacientes em seu consultório de oftalmologia. Parece, então, que Watson representava o próprio Doyle naquele momento: um médico sem muita projeção profissional, medíocre de certa forma. Sherlock Holmes seria, então, o alter ego, o outro eu, o desejo de ser invencível, de ser excepcional. Ao mesmo tempo, não poderiam se dissociar a realidade e o desejo, assim como a amizade entre Holmes e Watson. Em verdade, até mesmo Sherlock Holmes aparece como um detetive iniciante em Um estudo em vermelho, o que se modifica radicalmente com a presença do Dr. Watson. Ambos necessitavam da presença um do outro. Eram complementares.
Seria essa hipótese pertinente? Quem saberá a verdade? Espera-se a resposta, no desfecho final, em que após a baforada do seu cachimbo o detetive dirá as palavras saindo emolduradas por um sorriso: “Elementar, meu caro…”.

 Carlos Carvalho Cavalheiro – 26.12.2017.