domingo, 14 de fevereiro de 2016

Memória e Barbárie





“Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos de empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”. [...] Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro”. A afirmação é de Walter Benjamin alertando, num outro contexto, sobre a pobreza cultural e a incapacidade de transmissão de experiências que levariam à barbárie.
Há alguns anos era possível afirmar que os lugares públicos de memória derivavam de construções históricas e sociais que implicavam na escolha dos grupos detentores de poder que selecionavam o que seria esquecido e o que seria evidenciado como formador da identidade de determinada comunidade. Se de fato a possibilidade de seleção da memória coletiva, por meio da exaltação de fatos e personalidades em forma de monumentos, continua emanando das classes detentoras de poder (seja político, econômico ou social), é de se pensar se tais classes hoje em dia interessam-se em justificar o seu poder no presente mediante a construção idealizada do passado.
A princípio, as classes dominantes parecem ter perdido o interesse pela transmissão da memória idealizada. Primeiro porque essa memória já não se faz necessária para o controle. Numa sociedade marcada pelas relações mercadológicas, até mesmo a informação se torna um produto de consumo rápido e cambiável, que se transforma na mesma velocidade em que a tecnologia permitiu a sua transmissão. Lembra-nos “1984”, de George Orwell, livro que tem como personagem principal Winston Smith cuja tarefa é reescrever documentos históricos adaptando-os sempre ao posicionamento político atual do governo.
                Segundo motivo é que a propaganda e os meios de comunicação de massa são mais eficazes do que os monumentos e, também, mais sedutores. Todos sonham com a sociedade burguesa de consumo, todos querem ter seus próprios automóveis e seus aparelhos celulares, mesmo que isso implique em congestionamentos, insegurança e escassez de recursos naturais.
                Na barbárie, os monumentos e os espaços ou lugares públicos de memórias são descartáveis. A maior parte das cidades não produz, nem constrói grandes monumentos mais. Basta lembrar que em Sorocaba, por exemplo, os grandes monumentos que marcam os fatos considerados “relevantes” pela História Oficial surgiram na década de 1950. Quais são os monumentos mais recentes elevados em Porto Feliz? Bustos, estátuas, hermas? Em Itu, elevou-se um monumento com a estátua do fundador, Domingos Fernandes, em 2010 para comemorar o IV Centenário da cidade. Isso porque a cidade ainda não contava com uma escultura de seu fundador.
                O descaso das classes dominantes pela memória pode ser traduzido com o estado em que se encontram alguns dos monumentos que, em tese, deveriam servir como justificadores da dominação do presente. Basta citar um caso só: o marco da proclamação da Revolução Liberal de 1842 em Sorocaba.
                Chantado em um largo do final da rua Barão do Rio Branco, em pleno centro da cidade, esse monumento deveria ser a base para justificar o liberalismo como opção política que se perpetua no poder. Apesar de se tratar de um conceito do século XIX que é estranho ao nosso tempo, é fato que até a bandeira da cidade carrega em seu lema referência a esse espírito “liberal”.
                Pois bem, esse monumento, que se refere a personalidade considerada de suma importância histórica para a cidade, Rafael Tobias de Aguiar, tem o seu nome colocado na placa convivendo hoje com contêineres de lixo a cercá-lo. Não se importa mais a classe dominante em preservar a sua visão do passado. Com isso, nem as classes subalternizadas poderão almejar a preservação e transmissão de sua memória. Enfim, chegamos de fato à barbárie.


Carlos Carvalho Cavalheiro.

14.02.2016

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