A discussão é interessante. Há tempos não me envolvia em tais polêmicas. Um pouco pela maturidade e o reconhecimento de que nem todas as batalhas valem a pena. No entanto, creio que essa discussão conceitual seja imprescindível.
Primeiro, porque ajusta e sincroniza os objetivos que temos - independentes da nossa cor de pele ou da nossa origem - na construção de uma sociedade realmente igualitária em direitos e oportunidades. Segundo, porque abre precedente para outras discussões e esclarece alguns fatos que, no meu entender, são equívocos do movimento chamado de "igualdade racial".
Vamos partir do conceito de "raça". A antropologia, assim como a biologia, desmente a existência de raça para seres humanos. O termo raça pressupõe características fixas e permanentes a grupos específicos. Daí se depreender que a existência de raça pressupõe a divisão entre "melhores" e "piores", entre "superiores" e "inferiores". No entanto, não se trata apenas do desejo de não querer dividir a sociedade de acordo com suas características biológicas entre superiores e inferiores. Não se trata de criar uma ficção para elaborar uma sociedade utópica.
A não existência de raça como conceito ajustável ao ser humano é confirmada pela ciência. De acordo com informações veiculadas pela Wikipedia, "A ciência já demonstrou através do Projeto Genoma que o conceito de raça não pode realmente ser utilizado por não existirem genes raciais na espécie humana".
Obviamente, há quem defenda que o termo raça para o ser humano não é utilizado como verdade científica, mas dentro de um contexto social de construção histórica. Sim, entendo. Mas qual a vantagem em se continuar utilizando o termo raça para seres humanos? O livro Orientações e Ações para a educação das relações étnico-raciais, publicado em 2006 pelo MEC e amplamente distribuído pelas escolas públicas, defende a manutenção do termo raça como forma de valorização das características e da história do negro. É mais ou menos como se dissesse: "Está bem, o opressor sempre disse que existia raça para os humanos. Aceitamos, mas queremos dizer que a nossa raça tem o seu valor". A mim isso soa como ridículo.
A construção social e histórica do conceito de raça para ser humano sempre levou em consideração as diferenças para a manutenção das desigualdades, servindo, por exemplo, como justificativa do europeu para a escravização do índio e do africano.
Portanto, o termo etnia - que poderíamos simplificar como as diferenças biológicas e culturais - ajusta-se mais ao ser humano do que o termo raça e presta um serviço mais adequado na construção de uma sociedade sem desigualdades de oportunidades e de direitos. Então, seguindo esse raciocício, não há que se falar em raça, mas sim em etnias.
Atente-se para o plural utilizado: etnias... Sim, pois, os povos africanos que para cá vieram são originários de diversas culturas. Por isso, também, não existiria uma "raça" negra. Isso é uma criação da própria escravidão, a qual não respeitou as diferenças dos povos escravizados. Por outro lado, a etnia reconhece as diferenças tanto biológicas como culturais. Daí os cultos de origem (ou matriz) africana serem diversos aqui no Brasil, dependendo da influência maior do povo que o constituiu ou recriou aqui nestas terras.
Aprofudando um pouco mais a discussão, vejo um pequeno desajuste no termo "igualdade", quando se pretende que todos tenham as mesmas oportunidades e direitos. Isso porque toda uma gama de legislação já prevê e reguarda essa igualdade. A nossa Constituição diz que "Todos somos iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza" (art 5º, caput), e que a República Federativa do Brasil se fundamenta na promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, inc. IV), e que a prática de racismo é crime inafiançável e imprescritível (Art. 5º, inc. XLII). Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) garante a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 3º, inc. I).
Poder-se-ia alegar que as leis brasileiras são letras mortas, algo que ninguém cumpre e nem leva à sério. Isso seria o mesmo que alegar a falência das instituições e do Estado democrático de direitos. Então, a luta não seria pela "igualdade" racial, mas sim pela recuperação da moral e dos princípios.
Não sendo esse o caso - embora se admita que cultural e historicamente as legislações brasileiras são amplamente flexíveis de acordo com a situação - deve-se buscar o cumprimento dessas leis com justiça.
Ora, a igualdade já está prevista em lei. A discriminação - o racismo em si - é punido e combatido legalmente. O que falta para a efetivação da igualdade? Na minha modesta opinião, o que falta é a aplicação da lei com equidade. Por isso a sugestão que faço da substituição do termo "Igualdade" por "Equidade". Este último pressupõe que a regra será aplicada levando-se em consideração as diferenças e especificidades de cada caso. Assim, como um exemplo, a igualdade seria a aplicação de uma avaliação escrita, impressa da mesma forma, para todos, sem levar em consideração que alguns alunos são cegos (e, portanto, necessitam de provas em Braille), outros possuem visão subnormal, necessitando provas impressas em caracteres maiores etc. Garantiu-se a igualdade quando a avaliação escrita foi distribuída igualmente a todos. Mas houve justiça? Não. O aluno cego e o aluno com baixa visão, embora não tivessem sido barrados na avaliação, foram excluídos porque as suas diferenças não foram levadas em consideração. Equidade é igualdade com justiça, é levar em consideração as diferenças de cada um.
Talvez resida aí a celeuma que causa a aplicação de cotas nas universidades. Considero que as cotas não são a resolução única do problema, mas possuem a vantagem de iniciar o debate acerca da necessidade de ações reparadoras. No entanto, não posso admitir as justificativas preconceituosas e discriminatórias em relação às cotas. No início, até mesmo estudantes universitários discriminavam seus colegas cotistas, revelando o quão enraizado está o preconceito e o etnocentrismo nas nossas relações sociais. Tal histeria só possui um motivo: o desconhecimento da história - e da construção ideológica do "racismo" - no Brasil e o sentido de ação reparadora da lei de cotas. Assim, sob uma perspectiva de equidade, percebe-se com maior clareza o objetivo e a necessidade da implantação das cotas (mas, como já disse, isso não deve ser levado como resposta única para o problema da reparação).
Aproveito este espaço para falar, ainda, sobre a insistência de setores do movimento negro - especialmente aqueles que alardeiam a suposta "igualdade racial" - em falar na Lei 10639/03 quando esta, de fato, já foi alterada para a Lei 11645/08. É falta de conhecimento, para falar o mínimo - insistir numa lei que já foi alterada somente porque a anterior fala da cultura e história afrobrasileira e a posterior, a que está em vigor, acrescenta o índio. Bom, se estamos lutando pela "igualdade racial", por que não incluir o índio? Ignorar que a Lei já foi alterada demonstra apenas obstinação e ignorância (mas, por um princípio jurídico, ninguém pode alegar ignorância da Lei).
Basta ler o enunciado, o caput da Lei 11645/08 para verificar que esta ALTERA a anterior, a Lei 10639/03. É como se eu buscasse na Constituição de 1891 um direito ali exposto... Ora, depois dessa, outras tantas constituições brasileiras foram promulgadas e outorgadas. A atual é de 1988... É essa que devo usar como parâmetro para a busca dos meus direitos.
Insistir no vigor da Lei 10639/03, que já não existe mais, é prestar um desserviço à informação, à ampliação da luta pelo direito e oportunidade de todos - sem distinção - e, sobretudo, à organização de um país sob bases mais justas.
É, também, dar razão áqueles que não somos "racistas" ou preconceituosos e que isso é conversa de quem quer dividir o país entre negros e não-negros, ou seja, instituir de fato o "racismo" no Brasil. Ali Kamel defende que o movimento negro, de forma generalizada, está criando as bases para o entendimento de um país bipolarizado nesse sentido. Com tristeza fui testemunha de militantes "afrodescendentes" (como preferiram ser chamados) num debate em Porto Feliz se autodeclarando como "racistas". Quem ganha o quê com esse discurso?
Finalizando, quero concluir que na minha opinião o conceito que melhor se ajusta é o da Equidade Étnica, o qual, penso, deveria substituir o da Igualdade Racial.