segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Soronordestinos ou o destino de cada um


                                                                    Eu te reconheço em cada transeunte,
                                                                    Na displicência dos ébrios marchando na Praça,
                                                                   nas marquises onde dormem crianças,
                                                                  na hipotética eficácia dos discursos.
                                                                 Vejo tua feição de trezentos e cinqüenta anos
                                                                disfarçando as rugas com prédios modernos,
                                                                vidros reluzentes nas janelas e elevadores panorâmicos.
                                                                As pegadas dos índios tupiniquins, os primeiros pés
                                                                que massagearam o teu virgem solo,
                                                                tu escondeste sob a manta asfáltica.
                                                               Apagaste o Peabiru da história.
                                                              A casa de Baltasar Fernandes, teu pai,
                                                              demoliste sem comiseração e assim privaste
                                                             nossos olhos de tão raro monumento.
                                                             Deixaste apenas a Igreja de Santana, o Mosteiro
                                                             de São Bento, o casarão do capitão Chico,
                                                             uma ou outra construção e as antigas fábricas.
                                                             Seus prédios são insuficientes para te revelar.
                                                             São as pessoas que cumprem hoje esse papel:
                                                             os espanhóis, os negros, os paranaenses,
                                                            os italianos, os japoneses, os mineiros, os gaúchos,
                                                            os coreanos, os árabes, os chineses, os ingleses,
                                                            os índios, os estadunidenses, os alemães, os cariocas,
                                                             e todos os nordestinos em geral.
                                                             O Peabiru reinventado. A sina repetida.
                                                             Foste, és e serás sempre caminho de passagem
                                                             para muitos e de estada para aqueles que reconhecem
                                                            o teu brilho dissimulado na poeira do caos.

                                                                      Carlos Carvalho Cavalheiro – 24.04.2004.    


                                     Quando o fidalgo português Dom Francisco de Souza, governador geral do Brasil, recebeu a notícia de que se achara no morro do Araçoiaba sinais de prata, entrou em polvorosa, reunindo imediatamente as embarcações necessárias e sua gente: soldados da guarnição baiana, escravos índios e trabalhadores (provavelmente conhecedores de mineração). Em agosto de 1599, aproximadamente, estava o governador e seu séqüito em Araçoiaba. Esse foi o primeiro registro do deslocamento de pessoas do nordeste (Bahia, especificamente) para a região de Sorocaba (que ainda nem nascera).
                                     Séculos mais tarde, muitos dos escravos negros que trabalharam em Sorocaba eram nascidos no nordeste brasileiro ou de lá vendidos depois que o ciclo da cana de açúcar entrou em decadência. Esses são fatos históricos que afirmam a presença nordestina na formação da cidade de Sorocaba.
                                      Outro aspecto que inspirou a afluência de pessoas de outras regiões para Sorocaba foi sua localização geográfica. Estrategicamente localizada entre o sul do país e os caminhos que levavam a sertão adentro, como o Mato Grosso, Minas Gerais e mesmo para a capital paulista, a cidade sempre se deparou com o fluxo de pessoas das mais diversas etnias, costumes e crenças.
                                      Sorocaba sempre foi caminho de passagem dos índios que utilizavam a estrada do Peabiru, depois dos bandeirantes que aproveitavam esses caminhos abertos, posteriormente para os tropeiros no comércio de muares e hoje como ligação do Estado de São Paulo com o sul do país. Não é sem propósito que os pés cansados de muitos migrantes encontram nessa cidade o alento.
                                      Ao homem pode faltar o coração, os olhos, as mãos, o fígado. Pode faltar-lhe tudo. Só não pode faltar o seu pé. É ele que faz do homem o ser semovente em busca da terra sem males.
                                      Com seus pés Abraão obedeceu ao seu Deus e abandonou a progressista cidade caldéia de Ur para ser peregrino em terra estrangeira. O que buscava? Talvez, a fé. E os hebreus nos tempos de José rumaram para o Egito fugindo da fome. Anos depois, Moisés liderou o êxodo desse mesmo povo que se tornara escravo dos egípcios. Buscavam a liberdade e a terra prometida. E os apóstolos de Cristo, milhares de anos após, semearam a fé por todo o mundo conhecido. Seus pés conheceram o pó do chão de pelo menos (se aqui excluirmos a lendária pregação de Tomé aos silvícolas da América) três continentes. E os bárbaros, vindos do leste, assolaram o império romano. E os europeus medievais peregrinaram por terras muçulmanas, regando o solo com o sangue de duas fés.
                                        O homem move-se sempre que sente necessidade. Fugindo da seca, do desemprego, da miséria, dos desmandos, da usurpação das terras, da falta de competição do trabalho humano em relação às novas tecnologias, os homens partem de várias localidades em busca de melhores condições de vida.
                                        Era isso que buscavam os espanhóis e os italianos quando vieram para a progressista, moderna e industrializada cidade de Sorocaba, lá pelos idos do século XIX e início do XX.
                                        Na década de 1940 o industrial pernambucano Severino Pereira da Silva forma a Companhia Nacional de Estamparia (Cianê), adquirindo as fábricas Santa Rosália, Santo Antônio e São Paulo. Como bom padrinho, traz de Pernambuco muito dos trabalhadores dessas fábricas. E emprega outros nordestinos: cearenses, paraibanos...
                                          Outros nordestinos vêem para Sorocaba com a abertura de filiais de indústrias de São Paulo, nas décadas de 1960 e 70. Também, outra leva, foge da saturação dos empregos disponíveis na capital paulista. Outros, desistem do canto da sereia e nem chegam a conhecer São Paulo: param em Sorocaba. Há ainda os que para cá vieram como missionários religiosos, especialmente de igrejas evangélicas.
                                            A presença nordestina em Sorocaba é inegável. Ela está nas empresas de viação da rodoviária (trazendo e levando nordestinos), nos barganheiros das imediações do Mercado Municipal, no sotaque dos louvores de muitas igrejas, nas casas de produtos especializados, nos quadros dos sindicatos de trabalhadores das indústrias, em músicos, nas feições...
                                           São cerca de 100 mil pessoas culturalmente nordestinas que vivem em Sorocaba. Por culturalmente nordestino entendo a pessoa que, se eventualmente natural de local diverso do nordeste, traz consigo por influência direta de familiares a cultura nordestina. São os filhos e netos de nordestinos que possuem os mesmos gostos, concepções e traços físicos e culturais.
                                           Essa cifra corresponde a um quinto da população total. É por esse motivo que nos mais diversos lugares, cada vez mais, se vê a presença do nordestino. Atualmente, alguns de nossos políticos são nordestinos, como o vereador Antônio Arnaud Pereira (o Arnô). Artistas, como os músicos Cassiano Moraes e o Menino Josué e o repentista Manoel Balbino. Militares como o tenente-coronel do Exército Brasileiro Domingos de Abreu, da 14ª Circunscrição do Serviço Militar. Fotógrafos como José Gonçalves Filho (o Foguinho) e o Epitácio Pessoa (o Pita). Capoeiristas como o Mestre Pedro Feitosa, o Mestre Eduardo Falcon, o Mestre Jaime e o professor Segundo (conhecido também como Axé, ele ainda é presidente de uma associação beneficente, o projeto “Sou Axé”, que cuida de crianças e adolescentes). Pesquisadoras como Adilene Ferreira que produziu o CD e o documentário “Cantos da Terra”. Até no cururu, desafio cantado tipicamente paulista, encontramos nordestinos como Cosme da Silva (o Cosminho), Nelson Pedro Vieira (o Nelsinho do Pandeiro) e Edival Rodrigues dos Santos (o Santo, baixista). Na Folia de Reis está o baiano Juarez Ribeiro Dutra, tocando caixa. E tantos outros nordestinos que contribuíram e contribuem para a cultura e o progresso de Sorocaba.
                                             Como negar a participação de Valdecy Alves e seu irmão Flávio Alves no desenvolvimento cultural de Sorocaba? Cearenses, residiram aqui por alguns anos, fundando jornais culturais como o Pedaços e o Luz do Túnel, produzindo vídeos, editando livros, publicando os seus próprios trabalhos, criando grupo teatral, realizando varal de poesias na Praça Coronel Fernando Prestes...
                                                E o que dizer de Alcides Nicéas? Pernambucano de Escada, foi um dos mais ardorosos sócios do Centro de Folclore de Sorocaba, sendo seu presidente em 1977. Foi ainda um dos fundadores da Academia Sorocabana de Letras e diretor do Gabinete de Leitura Sorocabano. O Museu do Folclore, criação do Centro de Folclore de Sorocaba, recebe seu nome. Infelizmente, encontra-se desativado. Alcides publicou ainda inúmeros artigos na imprensa local e diversos livros como “Verbetes para um dicionário do carnaval Brasileiro”, “O dinheiro na linguagem popular”, “Lampião, médico e parteiro”, “Aboio, um ritual agreste”, “Feijão tropeiro” entre outros.
                                                São esses nordestinos que escolheram Sorocaba e que, reciprocamente, essa cidade os acolheu. São os soronordestinos, encontrando aqui o seu melhor destino.
                                              

Carlos Carvalho Cavalheiro

24.04.2004

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