Eu te reconheço em cada transeunte,
Na displicência dos ébrios marchando na Praça,
nas marquises onde dormem
crianças,
na hipotética eficácia dos discursos.
Vejo tua feição de trezentos e cinqüenta anos
disfarçando
as rugas com prédios modernos,
vidros reluzentes nas janelas e elevadores panorâmicos.
As pegadas dos
índios tupiniquins, os primeiros pés
que massagearam o teu virgem solo,
tu escondeste sob a manta asfáltica.
Apagaste o Peabiru da história.
A casa de Baltasar Fernandes, teu pai,
demoliste sem
comiseração e assim privaste
nossos olhos de tão raro monumento.
Deixaste apenas a Igreja de Santana, o Mosteiro
de São Bento, o casarão do capitão Chico,
uma ou outra construção e as antigas fábricas.
Seus
prédios são insuficientes para te revelar.
São as pessoas que cumprem hoje esse papel:
os espanhóis, os negros, os paranaenses,
os italianos, os japoneses, os mineiros, os gaúchos,
os coreanos, os árabes, os chineses, os ingleses,
os índios, os estadunidenses, os alemães, os cariocas,
e todos os nordestinos em geral.
O Peabiru reinventado. A
sina repetida.
Foste, és e serás sempre caminho de passagem
para muitos e de estada para aqueles que reconhecem
o teu brilho dissimulado na poeira do caos.
Carlos Carvalho Cavalheiro –
24.04.2004.
Quando o fidalgo
português Dom Francisco de Souza, governador geral do Brasil, recebeu a notícia
de que se achara no morro do Araçoiaba sinais de prata, entrou em polvorosa,
reunindo imediatamente as embarcações necessárias e sua gente: soldados da
guarnição baiana, escravos índios e trabalhadores (provavelmente conhecedores
de mineração). Em agosto de 1599, aproximadamente, estava o governador e seu
séqüito em Araçoiaba. Esse foi o primeiro registro do deslocamento de pessoas
do nordeste (Bahia, especificamente) para a região de Sorocaba (que ainda nem
nascera).
Séculos
mais tarde, muitos dos escravos negros que trabalharam em Sorocaba eram
nascidos no nordeste brasileiro ou de lá vendidos depois que o ciclo da cana de
açúcar entrou em decadência. Esses são fatos históricos que afirmam a presença
nordestina na formação da cidade de Sorocaba.
Outro
aspecto que inspirou a afluência de pessoas de outras regiões para Sorocaba foi
sua localização geográfica. Estrategicamente localizada entre o sul do país e
os caminhos que levavam a sertão adentro, como o Mato Grosso, Minas Gerais e
mesmo para a capital paulista, a cidade sempre se deparou com o fluxo de
pessoas das mais diversas etnias, costumes e crenças.
Sorocaba
sempre foi caminho de passagem dos índios que utilizavam a estrada do Peabiru,
depois dos bandeirantes que aproveitavam esses caminhos abertos, posteriormente
para os tropeiros no comércio de muares e hoje como ligação do Estado de São
Paulo com o sul do país. Não é sem propósito que os pés cansados de muitos
migrantes encontram nessa cidade o alento.
Ao homem
pode faltar o coração, os olhos, as mãos, o fígado. Pode faltar-lhe tudo. Só
não pode faltar o seu pé. É ele que faz do homem o ser semovente em busca da
terra sem males.
Com seus
pés Abraão obedeceu ao seu Deus e abandonou a progressista cidade caldéia de Ur
para ser peregrino em terra estrangeira. O que buscava? Talvez, a fé. E os
hebreus nos tempos de José rumaram para o Egito fugindo da fome. Anos depois,
Moisés liderou o êxodo desse mesmo povo que se tornara escravo dos egípcios. Buscavam
a liberdade e a terra prometida. E os apóstolos de Cristo, milhares de anos
após, semearam a fé por todo o mundo conhecido. Seus pés conheceram o pó do
chão de pelo menos (se aqui excluirmos a lendária pregação de Tomé aos
silvícolas da América) três continentes. E os bárbaros, vindos do leste,
assolaram o império romano. E os europeus medievais peregrinaram por terras
muçulmanas, regando o solo com o sangue de duas fés.
O homem
move-se sempre que sente necessidade. Fugindo da seca, do desemprego, da
miséria, dos desmandos, da usurpação das terras, da falta de competição do
trabalho humano em relação às novas tecnologias, os homens partem de várias
localidades em busca de melhores condições de vida.
Era isso que buscavam
os espanhóis e os italianos quando vieram para a progressista, moderna e
industrializada cidade de Sorocaba, lá pelos idos do século XIX e início do XX.
Na
década de 1940 o industrial pernambucano Severino Pereira da Silva forma a
Companhia Nacional de Estamparia (Cianê), adquirindo as fábricas Santa Rosália,
Santo Antônio e São Paulo. Como bom padrinho, traz de Pernambuco muito dos
trabalhadores dessas fábricas. E emprega outros nordestinos: cearenses,
paraibanos...
Outros nordestinos vêem para Sorocaba com a abertura de filiais de
indústrias de São Paulo, nas décadas de 1960 e 70. Também, outra leva, foge da
saturação dos empregos disponíveis na capital paulista. Outros, desistem do
canto da sereia e nem chegam a conhecer São Paulo: param em Sorocaba. Há ainda
os que para cá vieram como missionários religiosos, especialmente de igrejas
evangélicas.
A presença nordestina em Sorocaba
é inegável. Ela está nas empresas de viação da rodoviária (trazendo e levando
nordestinos), nos barganheiros das imediações do Mercado Municipal, no sotaque
dos louvores de muitas igrejas, nas casas de produtos especializados, nos
quadros dos sindicatos de trabalhadores das indústrias, em músicos, nas
feições...
São
cerca de 100 mil pessoas culturalmente nordestinas que vivem em Sorocaba. Por
culturalmente nordestino entendo a pessoa que, se eventualmente natural de
local diverso do nordeste, traz consigo por influência direta de familiares a
cultura nordestina. São os filhos e netos de nordestinos que possuem os mesmos
gostos, concepções e traços físicos e culturais.
Essa
cifra corresponde a um quinto da população total. É por esse motivo que nos
mais diversos lugares, cada vez mais, se vê a presença do nordestino.
Atualmente, alguns de nossos políticos são nordestinos, como o vereador Antônio
Arnaud Pereira (o Arnô). Artistas, como os músicos Cassiano Moraes e o Menino
Josué e o repentista Manoel Balbino. Militares como o tenente-coronel do
Exército Brasileiro Domingos de Abreu, da 14ª Circunscrição do Serviço Militar.
Fotógrafos como José Gonçalves Filho (o Foguinho) e o Epitácio Pessoa (o Pita).
Capoeiristas como o Mestre Pedro Feitosa, o Mestre Eduardo Falcon, o Mestre
Jaime e o professor Segundo (conhecido também como Axé, ele ainda é presidente
de uma associação beneficente, o projeto “Sou Axé”, que cuida de crianças e
adolescentes). Pesquisadoras como Adilene Ferreira que produziu o CD e o
documentário “Cantos da Terra”. Até no cururu, desafio cantado tipicamente
paulista, encontramos nordestinos como Cosme da Silva (o Cosminho), Nelson
Pedro Vieira (o Nelsinho do Pandeiro) e Edival Rodrigues dos Santos (o Santo,
baixista). Na Folia de Reis está o baiano Juarez Ribeiro Dutra, tocando caixa. E
tantos outros nordestinos que contribuíram e contribuem para a cultura e o
progresso de Sorocaba.
Como negar a participação de Valdecy Alves e seu irmão Flávio Alves no
desenvolvimento cultural de Sorocaba? Cearenses, residiram aqui por alguns
anos, fundando jornais culturais como o Pedaços e o Luz do Túnel, produzindo
vídeos, editando livros, publicando os seus próprios trabalhos, criando grupo
teatral, realizando varal de poesias na Praça Coronel Fernando Prestes...
E o que
dizer de Alcides Nicéas? Pernambucano de Escada, foi um dos mais ardorosos
sócios do Centro de Folclore de Sorocaba, sendo seu presidente em 1977. Foi
ainda um dos fundadores da Academia Sorocabana de Letras e diretor do Gabinete
de Leitura Sorocabano. O Museu do Folclore, criação do Centro de Folclore de
Sorocaba, recebe seu nome. Infelizmente, encontra-se desativado. Alcides
publicou ainda inúmeros artigos na imprensa local e diversos livros como
“Verbetes para um dicionário do carnaval Brasileiro”, “O dinheiro na linguagem
popular”, “Lampião, médico e parteiro”, “Aboio, um ritual agreste”, “Feijão
tropeiro” entre outros.
São esses nordestinos que escolheram Sorocaba e que, reciprocamente,
essa cidade os acolheu. São os soronordestinos, encontrando aqui o seu melhor
destino.
Carlos Carvalho Cavalheiro
24.04.2004